terça-feira, 18 de novembro de 2014

retornos e enganos - parte 1

Curioso é que ainda retorno. Retorno, às vezes, abrindo as páginas desse endereço meramente metafórico. Outras vezes, em sonhos, que, às vezes, não passam de calabouços e, outras, são puro júbilo de atos simples e ordinários como acordar uma amiga antes de me enfiar debaixo do cobertor e cochilar.

Meu plano inicial (ou final? ou quase final?) de colocar um ponto final nesse blog sem de fato colocar um ponto final nesse blog me parece um fracasso. Talvez por isso eu continue retornando. Porque há algo inacabado nessa multidão de palavras deslocadas, arrastadas e gravadas pelo tempo.

Assim como vários coisas que carrego e uso e digo, a Escala tem significados inúmeros. Não gosto de monosignificados. Escala é uma palavra rica, tanto no português quanto no espanhol. E é uma palavra que me foi adotada pela sua presença num desenho que uma vez foi feito à lápis grafite numa mesa de plástico debaixo do viaduto da Baixada do Glicério. Pediamos que aqueles artistas desenhassem suas vidas, seus sonhos, suas realizações. Não me lembro se estava naquela mesa naquele dia. Mas lembro que quando coletei os papeis, não pude resistir à vontade de tomar aquilo antes que fosse parar no lixo. E talvez ali estivesse um pouco de Liesel em mim, o que só percebi dois anos depois, sentada num cinema ao céu aberto em Córdoba.

Nas minhas últimas férias, procurei tanto aquele desenho. Eu tinha certeza que ainda o tinha. Mas pensei que talvez o tivesse levado pra Mostar em algum momento. E tentei relembrar se tinha jogado fora o desenho quando limpava o quarto e empacotava a pequena parcela das minhas coisas que eu manteria como meus 'bens materiais'. Pois aqueles últimos dias são tão embaçados na minha memória. Revirei tantos papeis que não consigo lembrar. Mas seria a minha cara jogar o desenho fora. "Um sinal de que as coisas acabaram e devem acabar", eu teria pensado ao jogar o desenho junto a uma pilha de provas, de textos de história, de relatórios de biologia. Mas, não. Por que diabos eu teria feito tamanha besteira?! Aquele desenho significava coisas pra mim antes de eu partir e não era meu direito me livrar dele daquela forma.

Pois é tarde demais pra lamentar tais perdas. Talvez algum dia eu o encontre. E talvez naquele dia eu ainda não tenha esquecido a senha desse usuário. O que me cabe relatar aqui é que o desenho se tratava de uma casa.

Era uma casa em algum lugar que eu não sabia onde. Havia uma árvore de um lado. Talvez houvesse um sol no topo do papel, não me lembro ao certo. Não lembro se haviam flores, mas quando penso naquele desenho, imagino flores ao lado da casa. Pois era uma casa bem simples: paredes, telhado, janelas, porta. Uma típica casa desenhada por uma criança. Mas quem havia desenhado aquilo não era uma criança, era alguém que não tinha uma casa. Era um morador de rua, um sem-teto, um desabrigado. Não importa o termo politicamente correto que você queira usar.

Eu pegara aquele desenho pois ele despertara uma curiosidade gigantesca em mim. Mas não havia sido simplesmente pelo objeto central; havia sido pela plaquinha desenhada ao lado, onde se lia "Escala Girassol". Eu não sabia se era um desenho. Se era o passado. Um lugar real ou um lugar imaginário. Mas estava ali, uma escala. E, na minha memória, havia um girassol desenhado ao lado da casa. Pequenino.

Mas talvez eu esteja enganada.

PS: Acho (e sei) que havia em mim um grande medo de escrever esse post. Encontro-me aliviada por finalmente o ter feito, mesmo sabendo que o lerei em alguns dias e terei o desenho de apagá-lo pra sempre pela escolha das palavras, pela forma brega, "cheesy" de relatar e explicar origens. 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

declaração

...E assim eu declaro que, até que o tal desenho seja encontrado, o silêncio perseverá.

Mas antes do silêncio, que venha Pessoa.

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

domingo, 24 de agosto de 2014

um pedaço de Sampedro


De: Diccionario de la lengua española (RAE)
Para: Uma explicação de inúmeros sentidos 

escala.
(Del lat. scala, y este del gr. σκάλα).
1. f. Escalera de mano, hecha de madera, de cuerda o de ambas cosas.
2. f. Sucesión ordenada de valores distintos de una misma cualidad. Escala de colores, de dureza
3. f. Línea recta dividida en partes iguales que representan metros, kilómetros, leguas, etc., y sirve de medida para dibujar proporcionadamente en un mapa o plano las distancias y dimensiones de un terreno, edificio, máquina u otro objeto, y para averiguar sobre el plano las medidas reales de lo dibujado.
4. f. Tamaño de un mapa, plano, diseño, etc., según la escala a que se ajusta.
5. f. Tamaño o proporción en que se desarrolla un plan o idea.
6. f. Fís. Graduación empleada en diversos instrumentos para medir una magnitud.
7. f. Ingen. y Mar. Lugar donde tocan las embarcaciones o las aeronaves entre su punto de origen y el de destino.
8. f. Mil. escalafón.
9. f. Mús. Sucesión diatónica o cromática de las notas musicales.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

fragmentos finais - parte dois

Dialética

Eu tenho sérios problemas com relatos. Hoje, conversando com uma grande amiga, nos aprofundávamos na ideia da escrita como um ato egocêntrico - nem sequer egoista - e como nos parece que ao longo dos anos é um ato que se torna mais e mais difícil. Talvez porque sejamos extremamente críticas com nossa própria produção, mas também porque ainda não estamos certas de como evitar a mera dialética do 'eu' com o 'outro' de modo a não eliminar o 'outro' e, sim, tornar-lo espectador, leitor, devorador de palavras nossas.

Bastava um pedaço de grama.


O tal desenho atrás da porta

Pois bem. Falta-me pouco para partir mais uma vez; só que agora sei que não retornarei para aquela escala. E que aquela escala já não é exatamente representada por aquele desenho atrás da porta.

Desculpe, você está certo. Talvez eu devesse parar de falar de forma tão misteriosa e emblemática. Pois bem, o que você quer saber? Ah sim! O que é esse tal desenho atrás da porta! O que é essa tal Escala Gira Sol da qual eu tanto falo! Um nome tão ridículo, não acha?. Mas era provavelmente a melhor ideia dentre os nomes que eu havia pensando para esse pedaço de sítio web. Não! O nome não veio do nada. Tá, eu sempre gostei de girassois, mas assim desse jeitinho mesmo: t u d o    j u n t o, nãoseparado.

"Escala Gira Sol" era o que se lia naquela plaquinha de grafite. Era uma placa desenhada à lápis grafite, do lado de uma simples casinha com duas janelinhas...

(inacabado)

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

fragmentos finais - parte um

Segurava em mãos aquele livro de uma história de terror infantil e pensava sobre como minha mente sempre parece voltar para aquele livro. Não só porque foi um dos livros que eu li inteirinho só através da escuta naquelas noites em que minha mãe se sentava no pé da minha cama e lia em voz alta pra que eu e minha irmã caíssemos no sono - e ela era sempre a primeira a fazê-lo -; mas também porque eu sempre retomo a ideia de que aquele personagem escondido por trás daquelas palavras foi capaz de sair de seu próprio corpo. Corvos pretos; pretos como aqueles pássaros que eu observava pela janela da sala três. Krabat fugira do seu próprio corpo e sempre tive inveja disso. E, na minha concepção, a inveja é um sentimento tão cruel e desprezível quanto o arrependimento.

Coloquei o livro de lado.

-

Enquanto escrevia a dedicatória, o metrô balançava. Minhas palavras saíam borradas no papel, embora tão claras em minha mente, e eu adicionava letras inexistentes que eram mero produto da minha confusão linguística. Ouvi a voz masculina em português anunciando a próxima estação e depois a voz feminina, em inglês.

Era a minha estação.

-

Quando fechei a porta, lá estava. O desenho nunca me abandonou, embora eu tenha esquecido dele por um bom tempo. A Escala foi só um ponto de estadia. Foi só um ponto imaginário daquele sonho sobre o qual aquela holandesa me contava enquanto atravessávamos a rua. Eram só duas janelas e uma porta debaixo de um telhado; aquela casa que era vizinha de uma árvore e presenciava o sol com seus raios tortuosos. Havia uma placa desenhada a lápis ao lado. Mas aquela paisagem era coberta pela rosa de nanquim que me foi dada de presente em uma daquelas eternas tardes de quinta-feira nas quais nos largávamos sobre o chão gelado e nos deixávamos ir muito, muito longe.

-

Ali no carro, ao lado da minha mãe, eu fechei os olhos e pude ver tudo perfeitamente. Foi em como muitas das minhas memórias, quando eu sou a espectadora da minha própria vivência, como se eu estivesse mesmo fora do meu corpo. Aqueles sons tão harmoniosos que ecoavam do rádio do carro eram os mesmos que inundavam aquele palco de chão de madeira preta em que nós duas mergulhávamos. Além de tudo, mergulhávamos no olhar um da outra, como se nos unissemos num só corpo artístico, como se nossos movimentos se encaixassem perfeitamente mesmo que não tívessemos ensaiado o tanto quanto gostariamos. Ali, de olhos fechados, eu podia ver tudo do palco superior, até que o carro estacionou e eu tive que correr pra fora, esperando voltar à tempo de ouvir o final da canção de Marcos Ariel.

O humor da nossa lua: pra nós, as fases.

-

Eles ainda não tinham acordado. Eu lavei a louça pacientemente no silêncio daquela manhã. Já não era tão cedo quanto eu gostaria que fosse. Tomei uma caneca cheia de um café forte que tinha acabado de fazer, sentada naquele banco branco do qual eu tinha tirado a almofada. Eu tinha esperança de ouvir algum barulho vindo da escala a cima de mim, mas o cenário permanecia em silêncio.

Deitei-me na rede verde que se espreguiçava em frente à casa e que eu havia me esforçado pra colocar mais próxima ao chão. Continuei a ler sobre jardins e crianças magras ganhando energia. Mas não sentia nada. E parei, tentando sentir o calor do sol bater sobre minha pele. Mas nada. Era como se nada mais fosse físico.

Pensei no desenho atrás da porta.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

janelas de transição

Meus dois anos de UWC acabam do mesmo modo que começaram: comigo sentada no aeroporto de Munique. Por alguma razão, sempre acabo na Alemanha e me parece que sempre será um lugar de escala: um lugar de escala entre uma casa e outra, entre uma fase da educação e outra.

Em agosto de 2012, eu me sentava em bancos idênticos a estes e escrevia naquele caderno com a capa cor de vinho que ainda não tinha tantas cicatrizes do tempo e do caminho. Eu me sentava e escrevia esperando aquele voo pra Sarajevo e podia sentir o olhar de uma garota que estava sentada em minha frente. Levantei os olhos para encará-la e ela virou o rosto. Só quando chegamos na capital da Bósnia&Herzegovina foi que eu descobri que aquela era Liza. Era a mesma Liza que sempre sorriu pra mim nos corredores de Musala e da escola e com quem eu me encolhi debaixo do cobertor pra assistir The Beasts of the Southern Wild. Uma Liza que não vejo há um ano e de quem me lembro com saudade.

Em janeiro de 2013, encontrei Erika, Maud e Carme nesse mesmo aeroporto. Lembro-me perfeitamente de estar caminhando em direção ao portão de embarque e me deparar com uma Maud encarando as telas com horários de embarque. Ela tinha lágrimas nos olhos por ter deixado Florença - e mal sabíamos como as coisas mudariam pra ela nos próximos meses - e tudo que fiz foi dar-lhe um abraço. Enquanto esperávamos, Carme encarava meus recém feitos dreadlocks, incerta sobre sua opinião em relação a eles. Foi exatamente por essas janelas do aeroporto de Munich que eu vi neve caindo pela primeira vez, com uma excitação absurda enquanto Erika, que é de Minnesota, tirava sarro dos meus comentários repetitivos e de como meus olhos brilhavam.

São essas janelas gigantescas do aeroporto de Munich, por onde vi o branco da neve se espalhar sobre os carros que transportam bagagens, que me fazem sentir em transição. Finalmente, volto pra casa; aquela minha casa no Brasil. E é um tanto quanto surreal me dar conta de que aqueles dois anos passaram tão rapidinho e que foi há dois anos que vi Liza me encarando; que justo ontem comíamos empanadas e nos balançávamos atrás da casa de Marta.

Pois bem. São só transições.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

breve e pronto

Embora deteste finais, creio que sempre necessito afirmá-los, duvidá-los, explicá-los. Assim como o fizeram Jose e Jaime em frente ao corpo frio e morto de Marcos. Pensei que esse último e cru post, que chamei de haicai devido ao nome de uma música que me atormentou pela infância inteira, seria o último e, ao mesmo tempo, sabia que estava enganada, que não poderia acabar um blog sem explicá-lo, explicar seu nome brega e bobinho; sem refletir de forma amedrontamente nostálgica a importância de escrever durante os últimos dois anos.

Então o farei. Pronto; em breve; Virão alguns posts sonhadores, explicativos, que não dirão absolutamente nada com nada para você e, talvez, dirão tudo para mim. Mas com certeza não me darei ao trabalho de explicar o último mês em que estive viajando na Europa de pico em pico, de acordo com grandes amizades, na beira do Mediterrâneo.

terça-feira, 27 de maio de 2014

haicai

"Me desculpe por não ser uma pessoa feliz. Eu só quero que isso acabe logo e que nós partamos.", foi o que ele me disse quando veio me dar boa noite. E eu não hesitei em relacionar o que ele sentia com o que sinto há algum tempo.

Talvez eu devesse estar aos prantos, desejando ficar; como ela o fez naquela nossa caminhada de volta a Susac, um pouco embriagadas.

Para que la realidad no sea irreal, nos dicen los que mandan, la moral ha de ser inmoral.

Enquanto nos alinhamos em fileiras no palco, para receber nossos certificados, que nos são entregados por uma mulher que eu nunca vi na vida. Em algumas horas, essa será a realidad. 

Assim, pois, o que parecia vontade imperiosa reduzia-se a veleidade pura, e, com algumas horas de intervalo, todos os maus pensamenos se recolheram às suas alcovas. Se me perguntardes por algum remorso de Sofia, não sei que vos diga. Há uma escala de ressentimento e de reprovação. Não é só nas ações que a consciência passa gradualmente da novidade ao costume, e do temor à indiferença. Os simples pecados de pensamento são sujeitos a essa mesma alteração, e o uso de cuidar nas coisas afeiçoa tanto a elas, - que, afinal, o espírito não as estranha, nem as repele. E nestes casos há refúgio moral na isenção exterior, que é, por outros termos mais explicativos, o corpo sem mácula.

Enquanto me transformo em personagem de uma história inventada por Machado de Assis ou criada por fases lunares e pedaços de pano: tanto faz, tanto fez. Agora já foi. 

O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos,

E Saramago era sábio, como sabemos. De que nos servem adjetivos? De que nos serve nos enfeitarmos, colorirmos, fingirmos esse sorriso no rosto? De que nos adianta forçar os 'últimos'? Forçar o existente acabado? Ou talvez percamos sentimentos por não expressá-los e acumulá-los em nós. 

De que serve tanta angústia e tanto lenga-lenga. Chega. Basta.

Queres que eu escreva sobre o aperto de me formar, de deixar Mostar, de deixar meus amigos? Sinto em decepcioná-los: não o farei. Porque aproveitei esses anos, me darei o prazer de não os lamentar com lágrimas de saudade precipitada. 

É bom o sentimento de estar pronta para partir. Estoy en otra canción, se acabo.

sábado, 24 de maio de 2014

xarope e tylolhot

Como já foi dito anteriormente, não sou capaz de concretizar finais em palavras. Talvez porque meus pensamentos nunca encontrem esses finais. E jogo pensamentos que tenho tido nos últimos dias.

#1 - Quantos insetos sobrevoam o Neretva durante o pôr do sol em Mostar?

#2 - Tão fácil se livrar das coisas que fizeram parte desses anos. Permaneço com o que já tinha e deixo uma parte pra trás.

#3 - Supo y no supe

#4 - Distribuo meus pertences materiais pela Europa durante esse verão.

#5 - Estou à ponto de realizar meu sonho de infância: visitar Constantinopla e Atenas (embora me divida com a simpatia por Esparta). E meu sonho de pré-adolescência: visitar a Espanha.

#6 - Sou meio sem coração. Às vezes.

#7 - Se retornar a Mostar, não o farei por mim.

#8 - Não tem problema não saber de tudo (e me consolo com tapinhas nos ombros).

#9 - Começo a detestar o verão. Esse calor me consome todas as energias.

#10 - Parei. Parei de vez?

#11 - Não, não tenho medo de partir. Já é hora, não importa a minha lealdade à Tabacaria.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

eu deixarei os versos



(..) Mas então pensei que ainda faltava uma parte a ser desvendada. Por que havia escrito que o poema havia sido muito significativo para mim? Vou lê-lo. Era a Tabacaria. Havia me enganado: não era simplesmente aquele trecho e aquele pedaço do meu caminho debaixo das terras paulistanas. Era a tabacaria do outro lado da rua.  

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo à Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora; e à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro

É a sensação de que tudo que passou foi só um sonho e as coisas mais concretas são os lugares físicos e as pequenas lembranças deles. A sensação de que falhei em tudo. Mas a lealdade ridícula que devo ao lugar físico que me proporcionou os sonhos das coisas reais por dentro, como a emoção da última dança no salão escuro e abafado.

E leio as palavras reconhecendo que esse poema se encaixa mais com o que sou agora do com o que fui. Mais com minhas dúvidas e descobertas de agora. 

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 

Sabendo que não faço nada além de pensar e pensar, e gastar pensamentos sem escrevê-los, sem lembrá-los. Desperdiço-os sem piedade, por medo de lembra-los, medo de concretizá-los em poesia, em prosa, em versos, em rabiscos discretos.

E sou péssima em escrever sobre finais. Porque tenho medo de mortalizá-los. Medo de torná-los mais banais do que já são. Tenho medo de dramatizá-los e torná-los mais dramáticos do que já são. Tenho esperança de lembrá-los de forma errônea, deslizada, singela. Porque tenho mais medo de saber a verdade no futuro do que de me enganar com falsas lembranças sobre o Dono da Tabacaria e concretas noites sem dormir.

domingo, 18 de maio de 2014

estamos aquí sentados

Na terça-feira, quando eu mal conseguia dormir por conta do estresse, do medo, da loucura que me tomou na última semana, recebi um email de uma grande amiga que há muito não vejo e ela me lembrou de que o tempo que eu passei aqui não foi desperdiçado, nem mesmo um segundo dele, e ela soube me dizer isso estando a dez mil quilômetros de distância, acudindo a aflição que havia me tomado paulatinamente, mesmo que um abraço de consolo tenha me sido oferecido nos últimos segundos em que meu computador funcionava, e eu mal sabia que a ausência do desespero me traria uma ausência ainda maior de solidão e vozes sem nexo algum, enquanto observava o papel parede e a estranha iluminação, com um livro "Guia da América Latina" no meu colo, pensando que talvez o futuro seja mais eloquente do que eu possa imaginar, Go to college!, ele disse, rindo, enquanto me fazia pensar sobre a inexistência de um plano, pensar que agora pra frente há um vazio onde antes havia escola e, que, eu finalmente terminei o colegial, num súbito espasmo de terror, me levantei e parti com uma amiga bielorrúsia, sabendo que não iria mais voltar. Me gustaría escapar.

           mirando cómo nos matan los sueños.

domingo, 11 de maio de 2014

yo no creo en caminos

Cheguei a um ponto de exaustão relacionado à privação de sono que vivi durante esses últimos dois anos - e provavelmente os últimos cinco anos da minha vida. Esse ponto de exaustão me joga num sono exacerbado, desproporcional à minha urgência de absorver conhecimento em um espaço de tempo um tanto quanto limitado.

Mas é assim que me coloco dentro de um mundo de sonhos tão real e palpável que já não sei mais diferenciar o que aconteceu no plano da realidade e o que aconteceu no plano dos sonhos. Já não sei dizer se o encontro com alguém foi parte de um sonho ou se uma conversa aconteceu na vida real. Uma confusão truculenta de falsas memórias que foram implementadas durante meu sono. Estou tão perdida nesse limbo que perco a conta dos copos de café ou das refeições degustadas durante um longo dia de estudo. Já não sei que horas acordei, porque nem sei se sonhava ou vivia. Mas, ora!, viver não é sonhar?

E aqui retomo um pensamento que me desassossegava dois anos atrás, enquanto me preparava pra me despedir da vida que havia vivido por dezesseis anos: por que diabos chamamos sonhos de sonhos? Digo, os sonhos relacionados ao nosso futuro, ao que desejamos. Por que os chamamos pelo mesmo nome que aquilo que não é real fora da nossa cabeça? Talvez seja um pensamento bobo, mas me ponho a pensar se sonhos são inalcançáveis. ("And she said 'dream choice is a university that you apply to but you won't get in.' Thank you, Sensei!") Ou se essa nomeação se refere ao fato de que o futuro está no que fazemos dele, como nossos sonhos de dormir são pura invenção nossa.

Em 11 de abril de 2012, eu escrevi:
Combustível. Essa é uma palavra essencial pra se entender a fragilidade do sonho. Talvez o sonho concreto fosse aquele no qual você não tivesse nenhuma vergonha, e, sim, completo orgulho por aquilo que você fizera na vida, pela pessoa que você se tornara. Um momento em que você olhasse pra trás e não lamentasse nenhum “erro” e não tentasse amenizar nada do que você fizera, não importasse a situação ou com quem você estivesse.
Tanta gente pensa no futuro como um lugar que você alcança através de uma estrada imaginária. Eu não consigo visualizar essa estrada, nem suas curvas e encruzilhadas. Pra mim, o futuro é um borrão, uma coisa completamente indefinida. A próxima palavra que eu vou escrever, e quem sabe apagar, é indefinida, totalmente borrada na minha visão, nesse segundo.

pero que los hay
                        hay

sábado, 10 de maio de 2014

os lemas de um(a) nômade


Enquanto caminhamos de volta pra casa, brincando com os esvoaçantes grãos de pólen que tomam conta do caminho, tentamos desvendar a estranha organização das mãos da rua. Discutimos um filme e o seu final brutalmente inesperado.

No dia seguinte, discutimos o brilhante desenrolar de uma história, que nos intriga. E somos - eu e Mandula - capazes de permanecer em pleno silêncio, absortas em nossos próprios pensamentos - num mundo muito distante além da montanha. Disfrutamos do Festival de Cinema Turco, mesmo que tenhamos em mente que estudar deveria ser uma prioridade a essas alturas do campeonato - talvez mais pra mim do que pra ela.

Entre tantos poréns, deixo-me desapontar comigo mesma, por não lembrar processos químicos e relações entre funções e estruturas. Mas não me parece relevante. Logo esqueço: dois anos (ou duas semanas) de aprendizado resumidos a um pedaço de papel com tinta azul. Não prova meu conhecimento; não prova minha capacidade de raciocínio. E detesto cada vez mais e mais o sistema tradicional de educação: provas, memorização, decoreba.

Adoeço brutamente, como se meu corpo já não mais aguentasse esse uso inútil que tenho feito dele. E enquanto o arrasto pra casa depois de cinco horas de provas, debaixo de um sol pelante de trinta e um graus, penso que números não me atingem e que não me dói pensar que os dias restantes caibam num pedaço de papel.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

ameixas: ame-as ou deixe-as

Putrefação de jabuticabeiras

Porque tenho tido demasiado Leminski em meus tempos de mitigação, deixo uma escolha aleatória dentre todas as cores plásticas que saem das páginas do laranja Toda Poesia que me foi um presente de Natal da minha adorável irmã.
que tudo passe

passe a noite
passe a peste
passe o verão
passe o inverno
passe a guerra
e passe a paz

passe o que nasce
passe o que nem
passe o que faz
passe o que faz-se

que tudo bem
e passe muito bem

Por fim, deixo um artigo sobre o despertar de uma biblioteca antiga. E é com orgulho que também deixo aqui nosso (de todos!) ponto de condensação; meu projeto final.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

fifteen days to independence


Por ora, vou dormir com Kandinsky, Piazzolla, algumas informações sobre Sudão, Ruanda e transnacionais em minha mente. Dormir com vários corações na parede (Si y No) e uma sensação engraçada de ter deixado um peso em algum lugar na minha cama (debaixo do travesseiro?). Talvez seja o livro de SAT que joguei na cabeça do Simon; talvez eu tenha deixado na rua, enquanto nos sentávamos na bifurcação.

Hoje algo começa. Hoje algo termina. IB.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

él decía

Ele me disse algumas coisas que me foram trazidas de volta aos poucos, enquanto relia um diário de três anos atrás. Tudo pareceu muito vivo enquanto eu ria das memórias redigidas.

Ele me dizia que, se havia alguém que sabia de (quase) tudo, era eu. Brincava de dirigir ao redor de retornos. Tentava aprender português, mas só arranhava umas poucas palavras inapropriadas. Ele brincava sem parar com um erro que eu havia cometido, confundindo anos com meses. Ele me chamava de aventureira.

Sentou-se ao meu lado naquela noite de ano novo em que eu tapava minha boca para não falar. Mandou eu me limpar na piscina. Ele riu de mim, da minha idade, do meu estado naquele momento; “you need to smile, Sofi”, disse e completou falando que eu ainda tinha muito pra viver. Eu achava que ele também.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

quincas e humanitas

Embora não tivesse chegado em sua meta, levantou subitamente e vestiu os brincos num ato automático.

“Onde você vai?”

“Não sei”, disse descendo as escadas. Tinha o pequeno caderno saindo pelo bolso das calças e um livro espiralado nas mãos.

Sentiu o frio das escadarias e saiu pra rua. Virou em uma esquina e estava a ponto de virar por um caminho conhecido quando se pegou virando pra outro lado. Subiu escadas e se deparou com uma igreja.  Contornou-a e desceu ruas, meio sem prestar atenção. Havia esquecido a simplicidade de estar perdida em uma cidade, sem horário para estar em algum lugar, sem medo de realmente se perder.

Descobriu ruelas da pequena cidade até se deparar com a praça que já conhecia. 19 de Abril de 1921, onde havia aterrissado dias antes. Meio inusitadamente, acabou sentada em um banco, lendo. E embora tentasse mergulhar naquelas palavras, o mar lhe chamava. Chamava de forma tão árdua que pingos d’água começaram a cair sobre o papel no exato momento em que ela começara a reparar na existente textura das páginas por trás das palavras

Quando não pôde mais resistir, se levantou e caminhou sobre o convés que adentrava a privacidade do mar. Imaginou ver a cena de fora; uma garota com calças indonésias, brincos de cigana e pés descalços caminhando em direção ao mar, a ponto de se entregar à vastidão. Tinha considerado deixar o livro e o caderno pra trás, mas, por medo de tê-los arrastados pelo vento, caminhava com eles junto ao corpo. Prestava atenção no mar debaixo dos seus pés que podia ver por entre as frestas que separavam os pedaços de madeira.

Quando chegou à ponta do convés, sentou-se cuidadosamente e colocou as pernas para fora. Surpreendeu-se quando o frio não a tocou. Esperava que os pés alcançassem o mar e, dessa forma, o mar a alcançasse. Mas por causa dos limites do seu corpo – o tamanho compacto – não chegou a tocá-lo. E ele não a tocou de volta. Permaneceu ali sentada. Fechou os olhos deixando o vento bater. Um pingo caiu sobre a sua face. Queria tocar a água.

Levantou-se lentamente e virou com cuidado. Subiu para a rua e caminhou até outras escadas que havia avistado. Chegando nelas, colocou o livro no chão e o caderno sobre ele. Tirou as sandálias e desceu as escadas com as pontas dos pés, ansiando pelo frio que a esperava no final da escadaria. A água a alcançou antes que ela a alcançasse: uma leve onda a pegou de surpresa. Pisou na praia de pedras coberta pelo mar. Levantou a barra das calças e foi tomada pela sensação de sua energia escorrendo e se diluindo junto ao sal do mar. Fechou os olhos por uns instantes.

Os pingos da chuva continuavam caindo e decidiu que era hora de voltar. Subiu as escadas, vestiu as sandálias e encarou a cidade: o mar, os telhados laranjas das casas brancas e a estátua no topo da pequena capela. Retornou pela rua enquanto a chuva apertava levemente. Passou por uma senhora com bengala e esqueceu de dar olá, arrependendo-se momentos depois. Poderia ter voltado. Mas de que importava? Não falava a língua. 

Pensou na entrevista com a escritora mexicana que havia lido algumas horas antes, porque pensava em escrever. Revendo isso, percebeu que ignorava a chuva. Numa tentativa de não o fazê-lo, passou a notá-lá com muita atenção, calculando quando a próxima gota cairia e sobre que parte de seu corpo. 

Percebeu que se arrastava pelas ruas, pois não tinha ganas de voltar. A chuva a obrigava a fazê-lo. Mas não estaria retornando, mesmo que a chuva estivesse caindo, se não tivesse o caderno e o livro em mãos. Maldito papel e sua textura frágil. Pouco importava. Percebeu reconhecer o caminho, a pizzaria na esquina e logo se encontrou em frente à ruela do apartamento. A porta estava aberta. Talvez estivesse esquecido de fechá-la.

PS: Quincas e Humanitas desejam um feliz dia do livro! 

segunda-feira, 21 de abril de 2014

temporariamente ausente (ou pelo simples ato de escrever)

"(...)

Acontece que sou terrível. Que me deixo atingir por banais acontecimentos e não me deixo atingir por brutalidades da vida. Porque sou assim, de uma pedra resistente ao vento mas irresistente às leves ondas do mar. Sou euforia em bocados e desespero em outros.

(...)

E porque sofro, percebo que existo. Porque me encontro nessas madrugas depois de um dia de criança de estudo, sabendo que nada é certo. Que minhas amizades são parte da falsidade do tempo. Porque sento sobre as pedras à beira do mar e percebo que em dois anos esse momento será só uma memória. E a realidade é que nunca vou saber se é uma memória ou a memória de uma memória. E nunca vou saber se estou cega ou se sou cega por acreditar estar cega.

Tenho medo. Tanto medo que me curvo sobre a mesa, sentindo a dor dos nós nas minhas costas. Medo da incerteza que antes me parecia uma lombriga prazerosa – mas afinal de contas, coisas que achamos excelentes se provam malévolas mais cedo ou mais tarde. (...)

Porque me permito sofrer, sei que vivo. Sei que sou tão simples quanto os que me cercam e tão complexa quanto os que não compreendo. Sei que ninguém me conhece e nem eu mesma. (...) Que sou só um bocado de lembranças de tardes no metrô, de riqueza e felicidade. Sou brutamente um nada que existe e, mais, vive. Com medo."

E por conta desse medo sobre o qual persisto escrever (e como um velho amigo me dizia, tenho uma paixão insolúvel pelo medo),  mas não só por ele, esse blog se encontra, temporariamente, num segredo pessoal. Ausente pra todos, menos pra mim mesma.

Porque ando escrevendo pouco no meu journal, está na hora de pelo menos escrever aqui por ninguém. Só pelo ato de escrever. Escrever pra mim mesma e ninguém mais.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

sobre a sorte e a maré

Sujeito de sorte aquele que se senta em um café expirando o fermento das pinturas nas paredes. O passarinho canta como o relógio de parede de sua infância enquanto vê o tempo se esgotar. ¿Por que te vas? Morangos, perdizes, baratas pela manhã.

Dois anos atrás, numa aula de matemática, o telefone tocou sem explicação nenhuma. Um número desconhecido. Dois anos depois, o agora; esse agora em que o aniversário de uma colega de quarto traz grandes amigos pra dentro da madrugada, folheando um grande livro.

Sujeito de sorte que recebe lenços de um garçom atencioso quando se está a chorar ou é resgatado por amigos por ter adormecido dentro do banheiro. Meus pequenos.

Sujeito de sorte aquele que ouve o vento uivar a um vidro de distância e que joga açucar sobre o pires. Aquele que pode abraçar e ver. Ver, acima de tudo.

Ver, sentir, cheirar. Aquele cheiro diferente de cada pessoa com quem adormece; noites diferentes, quartos diferentes numa mesma residência.

Sujeito de sorte que tem um apoio materno e paterno à distância. Aquele que se isola numa ilha (desconhecida?) para se envergar sobre livros e escritos. Aquele que caminha pelas ruas no meio do asfalto, ignorando a existência da plena e vazia calçada. Buzinas agudas.

Numa tarde num bar depois do último dia de aula, engolindo rakija com um nó na garganta, nos levantamos para um improviso. Virei profissional na arte de improvisar a vida. Talvez por isso não ache que seja mera sorte viver nessa cidade, estar cercada por essas pessoas. Presa numa maré.

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro

terça-feira, 15 de abril de 2014

bata na porta antes de entrar

"O que eu mais odeio é o que os goodbyes já estão aqui." É o que me diz essa pequena patriota quando caminhamos pelo nosso caminho habitual. Essa cena se dá depois de estarmos sentadas em sua cama, abraçadas, não querendo partir. "Não quero ir pra casa" ela também me disse. E vi ela assim: pequena, frágil e sensível. Pulei para um abraço e senti o gosto ácido na minha boca. Entendi então que essa descrição não era nada diferente de como eu havia me visto uma hora antes, encolhida numa cama familiarmente confortável, desejando dormir para não ter que concentrar a minha respiração para expirar aquela bola de lã que se formava no meu peito. Pequena, frágil, sensível. Como uma formiga.

A minha resposta foi sincera; disse que os goodbyes só estão aqui se nós os fazemos estar. "And I mean it". Porque foi naquela pequena escadaria de Old Man's, quando eu deixei um brinco pra trás, em que prometemos não falar. E nós duas sabíamos que enquanto não colocássemos aquilo em palavras, em voz alta, uma na frente da outra, não seria tão difícil. E é também por isso que não gosto de escrever sobre essas pequenas coisas que me vão fazer falta, pois as conheço muito bem e a saudade de verdade não virá enquanto eu não a escrever.

Então por enquanto a largamos naqueles degraus e naquele caminho habitual. Largamo-na em um sono profundo de pedras e uma escovada lenta de cabelos longos. Largamo-na porque não a necessitamos no momento, muito obrigada.

domingo, 13 de abril de 2014

a cor da capa

Vi o taxi ir embora no horizonte e parei por um instante para vestir minha jaqueta. Larguei minha mochila no chão e foi quando me deparei com aquele prédio ao meu lado. Esquecido e sozinho. Sem cultura, sem moral. Bez kulture, bez morala. Deixei a mochila pra trás e fui me sentar naqueles degraus.

Voltei a pensar na mesma faixa amarela algumas horas depois. I'll be returning on April 12. Ruínas. Tão abandonadas e esquecidas quanto cegos em um asilo. E que se misturam em tantas metáforas e nos fazem perguntar o significado de coisas maiores e inexplicáveis. Buscamos conforto no explicável e no existente, às vezes nos esquecendo que o que há de mais bonito é o que não podemos comunicar. Como a paixão por algo; uma paixão tão profunda quanto a de escrever ou tão profunda quanto o colossal buraco criado entre blocos de pedra. Cavados com uma pá - por cegos.

Gosto como a literatura na qual eu me imirjo me torna tão sensível à diferença entre o universo tangível e o universo da arte. Esse universo que é algo tão intocável e incompreendido quanto a arte contemporânea - o que me leva a pensar em uma conversa no meio do planeta terra. O que me parece um tanto quanto redundante.

Mas foi entre sushis e pães de uma padaria francesa que eu vi aquela brancura. Talvez não a mesma, mas gosto de pensar que era a mesma brancura da cegueira de Saramago. Não vi nada, pra falar a verdade. Talvez nem tudo tenha que ter um significado para todos nós.

E talvez devêssemos pensar mais sobre as semelhanças entre o mundo da cegueira de Saramago e o mundo tangível e explicável. Porque elas existem. E são muitas. Quem somos nós se não seres cegados pelo nosso próprio individualismo, criticismo e egoísmo? Talvez sejamos realmente essa massa: metade indiferença, metade ruindade.

Dois anos atrás, numa aula de filosofia, capturei algumas palavras de um documentário que assistíamos, escrevi-as num caderno de capa preta com a intenção de as fossilizar em minha própria caligrafia.  E agora trago-as de volta com a intenção de melhor compreendê-las.

A realidade real não existe. É sempre um olhar condicionado. Cada experiência de olhar é um limite, não conhecemos as coisas como elas são; só mediadas pela nossa experiência. O olhar é uma interpretação, está sempre mediado pelos nossos conceitos, nossos valores.
Paulo Cezar Lopes

Crescemos e mudamos a cor da capa. Deixamos ruínas como cidade arqueológicas dentro de nossos mochilas, largadas no asfalto de uma rua em plena Sarajevo.

domingo, 6 de abril de 2014

sobre abismos e céus

Acordo desesperada. Nem consigo abrir os olhos. Mas porque sinto tão arduamente o meu coração batendo, sei que já não estou naquele sonho. Sinto um pesar sobre o peito e um grito interno ecoa dentro de mim. Faço esforço para abrir os olhos e descubro que a minha bolsa está ao meu lado; que aquele inútil pesadelo era só uma bobagem.

Mas não era só bobagem. Era a manifestação do nível de frustração e desespero que atingi. Não só porque tenho que me manter sempre pra cima enquanto parece que todos estão rapidamente caindo num abismo de cansaço. Também porque meu computador não funciona mais e a dependência de um computador funcional nesse momento crucial do meu IB e da minha vida UWC fazem com que a situação seja, sem sombra de dúvidas, desesperadora. Tento me manter calma. Respiro debaixo da coberta e abro os olhos outra vez pra descobrir que meu despertador tocará dentro de cinco minutos.

Me pego pensando que talvez eles estejam certos. Eles todos que tiram sarro de mim por passar tanto tempo com primeiros anos. Ou eles todos que dizem brincando você vai passar o resto da vida no UWC, não? Me apavora. E suspiro, ainda ouvindo meu coração esbravejando e deixando minha respiração pesada. Por que arde tanto? Penso que talvez eu não devesse estar acordando num domingo de manhã para fazer uma viagem com primeiros anos, mas, em vez disso, eu deveria estar fazendo o mesmo que a minha colega de quarto. Acordando num domingo de manhã para estudar para os exames finais. Em menos de um mês.

Pavor. Pavor porque me assusta a ideia de pensar que não sei nada de nada. Me assusta a ideia de ficar pra trás enquanto sei que a maioria dos meus co-anos já iniciou o plano de estudos. E eu nem ao menos tenho um. Também sei que a maioria dos meus co-anos já sabe onde estará no próximo semestre. E eu nem mesmo tenho a confirmação disso.

Penso naquele momento de silêncio debaixo do céu marrom (azul? cinza? vermelho? roxo?), enquanto tentava esconder meu rosto. Porque queria esconder minhas lágrimas. Odeio chorar. E, acima de tudo, odeio chorar na frente dos outros. E sei que quando isso se torna inevitável, quando saí do meu controle, é porque o nível está alto. Mas não significa que eu esteja no abismo. E pretendo que isso esteja claro, sobretudo para mim mesma.

Meu despertador toca com a mesma música de sempre. Seixas. Levanto para me preparar, sabendo que nenhum dos três homens estará acordado quando eu os for encontrar na frente de Susac em vinte e cinco minutos. Mesmo assim, prefiro depositar um pouco de confiança. Porque já não me resta energias para não o fazê-lo.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

porque não compartilhamos dos mesmos interesses

Não lembro quais foram as exatas palavras que ela usou. Não lembro talvez porque eu tenha insistido em traduzir as palavras para que mais tarde eu as pudesse escrever em minha língua; ou talvez porque não importavam as palavras e, sim, o sentido que elas expressavam. Foi algo relacionado à importância do perdão em relação à importância do ressentimento. E eu concordei com a cabeça, debaixo do sol, deitada na grama, enquanto assoprávamos dentes-de-leão.

Talvez o fato de que eu não lembre exatamente as suas palavras esteja relacionado à maneira em que tenho vivido. Em fragmentos. Fragmentos isolados, anônimos, exaustos. Que nada mais são do que figuras que caminham na minha frente. Que nada mais é do que as palavras em francês ressonando e aqueles dedos pressionando botões numa máquina pequena e vermelha ao meu lado enquanto adormeço debaixo do sol. E viro marrom.

Esses fragmentos entre silêncios que não são estranhos; são marcas entre conhecidas que se encostam em paredes opostas ou em um pôster do Chaplin pensando em diversas modalidades de solidão e sexualidade. Uma performance. Também me disperso com as lembranças de uma infância alergênica, repleta de carrapatos - mas eles não perigosos, não? - e um cheiro que não consigo associar com nada.

Pão francês. Aquele da padaria da esquina, mas também aquele cozinhado por um bósnio que viveu uns bons anos na França. E um relato de lares roubados.

E me pergunto se há água. Não me imagino morando longe de água. E percebo que vivi a vida toda do lado de um calabouço. Um calabouço tão fixo como essa incapacidade de escrever algo livre. A incapacidade de desassociar isso daquilo. Ou aqui de mim.

Entre conversas embriagadas e sanduíches noturnos, há mais fragmentos. E há ainda mais fragmentos na falta de sono e naquele música que me traz uma paz imediata porque me lembra de uma criança dormindo no pé da cama. Criança quase emancipada, caindo no sono. Desfigura-se em conversas durante o almoço que acabam em emburramento e questionamento de mim mesma. Sem vergonha. E com pura culpa que me sobrevoa a minha mente toda vez.

Fragmento bom como aquelas cinco horas em que planejamos estudar e acabamos sentadas na minha cama. Ou ainda melhor como aquela risada por conta de uma máquina de lavar e risoto.

Ou cru como seres escondendo suas faces por medo do que veem. E quando me apaixonei por Kielowski três anos atrás, numa mera aula de filosofia, eu nunca imaginaria estar nesse fragmento de vida tão brutal. E cru.

Cru como peixe. Como isca. Mortal como a sobrevivência e as florestas nigerianas de um soza. Mortal como essas meras lembranças que são fragmentos. Tão mortais que me assusta escrevê-las. Imortal registro, fonte primária.

PS: O título dessa postagem foi completamente aleatório, relacionado à frase dita por minha colega de quarto enquanto relatava um acontecido do nosso dia para um querido primeiro ano. Essa frase foi ouvida no momento em que me peguei pensando em como nomear outro fragmento inútil e imoral como esse. E deixo outros fragmentos na pasta de rascunhos.

terça-feira, 1 de abril de 2014

mamas' room




Background info: Depois de tanto drama pra tirar a foto do quarto 10 para o Yearbook, finalmente agendamos a presença de pelo menos uma grande parte dos "moradores" do #10. Minha cama à esquerda (com um bando de firsties nela) e acama da Eli à direita, abaixo da bandeira de Pace
Na frente: eu e Eli. 
De cima pra baixo: Louisa (França), Anette (Noruega), Mandula (Países Baixos), Malak (Egito), Lucas (Brasil) e Simon (Bélgica).


sexta-feira, 28 de março de 2014

fragmentos (destruídos, em tradução)

- Sinto falta do Lucas.

- Nem me fale...

- É?

(Respiro fundo. Frustrada. Cansada. Sentimental)

- Sim. Nos últimos dois meses, eu estive tentado organizar uma sessão latina...

- É... Mas, sabe, é estranho. Ontem, na praia debaixo da Ponte Velha, eu vi a Marta, o Simon e você abraçando e eu senti que vocês eram minha família. De verdade, Sof, é muito estranho! Realmente senti como se vocês fossem minha família, um carinho muito imenso. Muito, muito esquisito.

(As lágrimas ameaçam. Não vêm. Mas eu as sinto escorrer por dentro de minhas vértebras. Vermes.)

- Eu sei. Também não consigo entender. Mas somos. Realmente sinto como se vocês fossem meus babies.

- Eu vou sentir muito a sua falta ano que vem.

(Pronto! Aí está, Maon! Agora posso ser a resistente. A indiferente. Mas sei que é verdade. E me confundo com essa mistura de reações.)

- Eu vou estar pertinho.

- Eu sei. Mas eu vou sentir falta de ter você na minha vida. Você vai ser uma memória muito boa.

- Você também.

- Espero que sim. Você já sabe o que você vai fazer? É oficial?

(Tremo. Apavoro. Quero cuspir tudo que se embaralha na minha cabeça.)

- Não é oficial, mas, bom, eu vou pra Alemanha, é isso. E você tem que me visitar.

- Bom, agora eu tenho alguma razão para conhecer a Alemanha. E uma muito boa.

Um silêncio ocupou nossa caminhada. Chegávamos em Susac.

- Olha! Vênus! 

- Onde estão minhas Três Sofias?

segunda-feira, 24 de março de 2014

a lei natural dos encontros

Tenho uma mania de criar teorias sobre o contato social e sobre a cultura do UWC Mostar. Há the balance theory, the generations pattern (não é minha criação e não concordo com ela), e a two types.
Gosto de pensar que há dois tipos de pessoas nesse colégio - e não ignoro as exceções. Há as pessoas que permanecem em seu quarto e recebem visitas. E há as pessoas que visitam, que raramente são encontradas em seus quartos.

Durante meu um ano e meio morando em Musala, sempre me coloquei na segunda categoria. O #8 e o #1 nunca foram necessariamente lugares de descanso, de calma. É verdade que no último meio ano o #1 se tornou ponto de visita também, enquanto me encontrava com mais pessoas sentadas na minha cama do que eu jamais imaginaria que caberia. Mas o #8 nunca foi ponto de visita e devo admitir que parte disso foi simplesmente porque eu nunca estive por lá, a não ser nas madrugadas viradas olhando para as cores amarelo, verde e azul do lado de fora. Durante meu ano e meio morando em Musala, eu me aventurava em dar boa noite de quarto em quarto nas noites em que meu humor estava em euforia.

A minha mudança pra Susac me trouxe pra categoria um. E isso me foi absurdamente estranho no começo, quando não fazia sentido sair do quarto pra procurar meus amigos, porque eles geralmente já estavam lá quando eu chegava. Então me instalei nessa categoria, na zona de conforto do #10, com as madrugadas cheias de café e a luz acesa mesmo que Eli já tenha adormecido.
Agora, retorno. E me pergunto que diabos isso significa.
Retrocesso?
Me carrego para uma semana em Musala. Sem saber o que vai ser desses loucos dias que estão por vir, com uma Conferência se aproximando e prazos finais do IB. Mas no final das contas estou agradecida que meus próximos dias não sejam sobre mim, que eu não tenha que priorizar minhas próprias responsabilidades.

sábado, 22 de março de 2014

na lista das melhores sonecas

(escrito na madrugada do dia 19 de março de 2014)

me perdi na beira do mar
Sinto falta da praia.











~~

Fui-me e desapareci no infinito desejo de existir no presente. E perdi o meu futuro. Por querer tanto estar e ser. Se mereci, então, cabe a mim entender e pisar com as pontas dos pés próximo à água do mar. 

Sem medo de me perder.



(escrito em algum lugar da costa croata no dia 22 de março de 2014)


beira do mar, lugar comum
(...) E penso que crescer em praias de areia me fez imaginar que o solo da praia era estático, não se movia. Só a água se movia. E já havia ouvido dizer que a areia se movia, mas pensava que ela o fazia quando ninguém estava olhando. Ela parecia tão calma e aglutinada debaixo de mim, debaixo da espuma das ondas. E eu adorava caçar aqueles pequenos bichinhos que pegavam jacaré para chegar na praia e se enterrar ali na areia. Era um passatempo e tanto.
E agora penso que as praia de pedra não são mágicas dessa forma. Mas são mágicas pelo barulho das pedras dançantes quando a onda retorna para o mar. A água as suga como se esperasse trazê-las de volta. Desmanchando a (in)existente formação.



Beira do mar, todo mar é um
Começo do caminhar
Pra dentro do fundo azul

Tudo isso vem, tudo isso vai
Pro mesmo lugar
De onde tudo saiu

quarta-feira, 19 de março de 2014

os da minha rua (ou bolo-de-peixe e marca-texto)

Não sei qual foi a última vez que falei com o abacateiro, e, na verdade, acho que faz tanto tempo que passei por essa transição que acaba fazendo sentido eu não ser capaz de resgatar nenhuma memória, embora pareça idiota que abacateiros não falem mais enquanto me deparo com gatos falantes chamados Roberto, que se esgueiram para trás da parede de escala - ah, se eu fosse um gato! - e permanecem sorrateiros mesmo com os chamados em voz fina - "mali, dođi vamo" -, especialmente porque penso que se eu fosse Roberto não perderia a oportunidade de escapar do quarto e deixar uma mensagem em marca-texto verde - good night - e deixar o cheiro do bolo-de-peixe cozinhado no primeiro andar, sem ter ao menos me perguntado sobre as risadas que haviam irritado o sótão inteiro só por causa de um esquete que nem mesmo foi atuado.

domingo, 16 de março de 2014

os ais e os hão de ser

Uma das primeiras coisas que eu aprendi na vida foi que tudo passa. Quando eu caí da escada na chácara da minha avó, quando meu pai acidentalmente queimou meu rosto ou quando aos catorze anos entrei numa difícil crise psicológica, era só isso que me diziam. Que tudo passa. Que passa quando casa. Passa como os aviões e as vuvuzelas de plantão.

Paixões também passam; por isso nunca consegui me jogar de cabeça nelas. Por isso por certo tempo acreditei que não havia mais a leitura em mim, que havia perdido esse sou passado. Porque passou. Amizades passam também. E o que há de tão cruel nisso? Somos moveis - e não moveis de enfeite, mas moveis perambulantes.

E tudo isso porque quero deixar aqui declarado o quanto odeio a palavra nunca. Odeio quando me dizem que eu sou incapaz de fazer algo, mas muito mais quando me dizem que eu nunca vou poder fazer algo. E detesto desde as minhas entranhas até o produtor das minhas lágrimas de raiva essa volatilidade do tempo. Porque está tudo na sua cabeça e, se você me dá licença, eu prefiro ficar com a minha própria e não aceitar o uso constante da palavra nunca. E aceite, por favor, que a palavra último pra mim tem conotações primaveris, doces e somáticas, que prefiro não carregar esse tipo de angustia junto ao meu corpo.

segunda-feira, 10 de março de 2014

o que há atrás das placas pretas (ou I tried really hard to fake it but I couldn't)

Corpos - corpuses - agonizam em silêncio. Estáticos, paralisados. Prendem o riso, o choro, a ânsia de se esconder. A ansiedade oculta detrás dos tons vermelhos e pretos. A luz pulsante e irritante acima de suas cabeças, esquentando o topo da nossa mente, o cérebro, os nervos que nos permitem memorizar nossas falas. Então seus corpos se misturam ao nossos, se aglutinam, se esgueiram por entre nossas pesadas excelências. Como sotaques do sul (e aquela minha cuia desaparecida). Nos invadem. E quase pulo da cadeira, achando que é a hora, mas ela segura minha mão com força e permanecemos ali nas cadeiras na lateral do palco. Ou da plateia. 
Nos levantamos e caminhando para trás da placas pretas. E é então quando começo a sorrir inusitadamente. Porque não há cortinas, nem coxias, nem peça. Há nós, vaginas. Unidas.

Pussies unite! 

E aqueles sussurros desesperados. 
Cantando, atiçados.
Com medo. Ariscos. 
Somos peças fundamentais do que vem a seguir. Dos monólogos ensaiados de pedaços certeiros.


Behind the black screen, há todos esses corpos vestidos de sangue e aflição.
Há meu medo, o seu, o nosso.
Atrás das placas pretas, há abraços confortáveis (e outros nem tanto) de apoio.
Incentivo.
Atrás das placas pretas, pode-se ouvir a vibração de ossos. De corpos. De pele, mãos, pés. Tudo se mexe involuntariamente.
Atrás das placas pretas, pode-se tocar a invasão daquele cheiro de entusiasmo. Ilustrativo. Emergente. 
Salta de corpo em corpo, de boca em boca, de passo em passo. Cafajeste. Nos suga.
Atrás das placas pretas, há a certeza de cheirar o que acontece do outro lado das placas pretas. 

E é atrás da placas pretas em que vive a magia de estar no palco. Sem coxias, sem pressa, sem atraso, sem nervosismo. Porque somos vaginas. Somos cruas, puras, abertas, ansiosas. Somos inseguras. E estamos atrás de placas pretas, no aguardo do palco-plateia.

E termino a noite pensando que começos são melhores que finais. Mas digo isso pensando especialmente nas placas pretas e pensando no orgulho que tenho dos que me cercam.

quinta-feira, 6 de março de 2014

sobre finais e cantorias

Sabe quando o livro acaba sem continuação?
Ou melhor: sabe quando você já está nas últimas páginas do livro e sabe que a história acabará de forma incompleta? Quando você sabe que não importa o quanto venha a seguir, quantos eventos acumulados, mortes inesperadas e avalanches de realização. Que de uma forma ou de outra a história estará inacabada.

Ou não. Talvez o final da história seja a ausência dele.

Mas, é isso: me sinto nas últimas páginas de uma história, sabendo que o fim não será suficiente. E me encontro agonizando entre a contradição dos meus oitos e dos meus oitentas.

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Drummond de Andrade

domingo, 2 de março de 2014

esmeraldas e marisois

Resolvi deixar aqui um pouco de background sobre o post anterior, porque me parece que, caso você, leitor (quem quer que seja), não esteja informado sobre a minha vida, meus últimos escritos nessa Escala não fazem o menor sentido... O menor senso de tempo, espaço ou atividades.

Depois de uma semana fatigante, na qual a minha mente se mostrou muito mais exausta que meu corpo - pra contradizer tudo que já vivi nesse lugar -, parti. Na quinta-feira, após um trágico exame oral de inglês e um excelente de espanhol, deixei Mostar com Marta, Nouf e Paula. Outra vez (e provavelmente a última) para ir a Sarajevo. Nos encontramos outra vez em Ljubicica, naquele canto de Barščaršija, depois de termos passado pela padaria francesa e nos deliciado com croissants e pães maravilhosos. O que preencheu nossa tarde foi aquela sensação que tivemos enquanto nos aventurávamos por livrarias e papelarias... como crianças na véspera do Natal.

Acabamos em Gold Fish com nossos novos cadernos, escrevendo e escrevendo. Naquela mesma mesa. Com a mesma apreciação do silêncio, mas uma notável diferença na presença de cada uma de nós.  E nos dirigimos à Chipas e, por fim, ao Guinness Pub. Como sabíamos que seria; como foi da outra vez. E quando deu meia noite, celebramos o aniversário de Marta, nascida no dia 29 de fevereiro, com quatro velas e meia. E várias višnjas. A noite acabou com "This is the A-R-E-A of L-O-V-E" gravado na parede. Feliz cumple, Martita!

Na manhã seguinte, parti para Tuzla com Bo e Markéta. Exatamente um ano atrás, havíamos nos aventurado juntas para Dubrovink e, ali estávamos, mais velhas, mais maduras (?). Um ano passado. Quando chegamos em Tuzla, Markéta partiu pra Belgrado e Bo e eu nos instalamos no Apartamant 03. Tuzla me deu uma nova noção sobre o país, com seus compridos prédios e seu espaço público mal utilizado. 

Na tarde seguinte, pegamos o ônibus pra Srebrenica.

Background: Srebrenica é uma cidade no nordeste da Bósnia&Herzegovina, muito próxima à fronteira com a Sérvia. Resumidamente, durante a guerra, Srebrenica era uma enclave protegida da ONU. Grande parte da população era bosniak. Em 11 de julho de 1995, cerca de dez mil (de uma população de trinta e dois mil) foram assassinados. O genocídio mais recente da Europa. Os Países Baixos tiveram um papel muito importante em proteger a enclave (o que não deu muito certo) e, por esse e outros motivos, Bo sempre quis conhecer Srebrenica. E eu também. Mas foi um tanto irônico que acabássemos somente encontrando tempo para visitar a cidade no feriado da Independência da Bósnia. A mesma independência que influenciou a invasão sérvia no Leste do país.

Srebrenica não é nem de longe destruída e triste como imaginávamos que seria. Um pequeno vilarejo com uma população atual de cerca de duas mil pessoas. Cinquenta por cento bosníaca, cinquenta por cento bósnio-sérvia. Cirílicos e latim. Uma cidade fantasma, com algumas ruínas e várias casas reconstruídas. Vários cães perdidos, como em todas as cidades desse país. A atmosfera não era pesada como eu imaginei que fosse ser. E Bo e eu nos aventuramos a caminhar seis quilômetros estrada abaixo para encontrar o memorial do massacre. O resto é autoexplicativo (ou pode ser encontrado abaixo). E foi seguido por uma caminhada matutina a uma fortaleza, uma casa abandonada e uma fonte de água. E um retorno mágico a Mostar, com a alegria no peito. Refreshment.

PS: Por conta da minha câmera quebrada, não pude tirar verdadeiras fotos. Tirei algumas com a pequena câmera de Bo e com a câmera de Marta. Cá estão algumas.





Desenho de uma capela




Famosa água de Srebrenica





PS2: Vou guardar pra sempre na memória aquele sorriso vibrante, genuinamente alegre, no rosto de Marta após receber o presente de aniversário de Paula. Sou cursi e sei: mas há amizades que nos deixam felizes só de ver. E, naquele momento, em Gold Fish, eu sentia essa felicidade inexplicável por uma amizade alheia. Mas não tão alheia assim.

sábado, 1 de março de 2014

memorijalni centar (ou última ponta do triângulo)

Parecia-lhe ridículo que não fosse capaz de escrever. Em vez disso, tirou o caderno da bolsa e começou a desenhar. E nem mesmo desenhar conseguiu, porque perdeu a completa noção de perspectiva. Aquelas linhas não faziam sentido. Tentou uma, duas, três vezes e acabou por se encontrar desenhando no escuro, sem saber direito onde deixava traços de grafite no papel. Finalizou o desenho com a rosa, a rosa deitada em cima de todos aqueles nomes. Nomes repetidos insólitas vezes.

E pôs-se a caminhar, notando finalmente aqueles blocos brancos. E, naquela escuridão da noite de sábado na beira da estrada, teve a sensação estranha de se encontrar na França, naquela manhã de agosto, enquanto andava de bicicleta por entre vinhedos. A sensação dos vinhedos: uvas abrochando, quase prontas para serem conservadas e transformadas em vinho. Algo nascendo, crescendo, vivendo. E naquele vinhedo francês, podiam-se distinguir os corredores que eram criados pela organizada formação dos arbustos. Tinha uma urgência de pular da bicicleta e correr por aqueles corredores, sem saber se encontrar naquele labirinto de vida e cores, debaixo do sol de verão.

Mas estava num lugar completamente diferente. E em vez de passear pelos corredores, se arrastava lentamente por entre os caminhos de ladrilhos. Paulatinamente, sem pressa, sem prece.

Parcela M5.

Sentia-se embriagada com aquela sensação de vazio que havia preparado dentro de si para uma invasão insueta que não viera. Deadly silence. Só ouvia o saco plástico amarelo batendo de encontro ao seu próprio corpo. Não havia nada para preenchê-la.

Tentava trocar o ângulo de visão, tentando se livrar da sensação do vinhedo. Mas não podia. Porque não havia direção na qual olhasse em que não pudesse distinguir corredores. Corredores formados por figuras vestidas de branco, imobilizadas, estáticas, empalhadas. Era isso que via e não aqueles polidos blocos brancos pontiagudos que preenchiam sua visão. Não conseguia escapar dos atrativos corredores que a puxavam para que corresse por entre eles, brincando de esconde-esconde. Eram figuras mortas deitadas debaixo da terra, gritando por socorro dentro de pedras brancas amadurecidas. Cortantes, falsas, esmaltadas.

8372.

Se encontraram no meio do caminho ("why that one?" "because... I don't know") e avançaram juntas. Eram só elas duas. I wonder what the empty spaces are. E torneiras, várias torneiras diferentes, sem sentido algum. Umas de rosca, outras de alavanca. Finalizaram juntas, de frente ao portão fechado.

“Should we go? I am a bit creeped out.”

A outra sorriu.

E, assim, partiram numa van policial - no mesmo dia em que pularam a cerca de uma capela. Era escuro e o vinhedo ficava pra trás, com o mesmo vazio pleno com que havia aparecido no horizonte antes do sol se pôr.

“I couldn’t understand how they can be all the same, while there are completely different stories behind each single one of them.”
“They were all the same in their death. They were all the enemy.”

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ferozes larvas (ou metamorfose ao avesso)

São sensuais e carregadas de tristeza essas horas de chuva fina, como se a alma, essa borboleta, nela fosse impregnada e submergisse na terra. Vêm ao pensamento todas as lembranças amargas depositadas no coração - separações de amigos, sorrisos masculinos que se apagaram, esperanças que também perderam as asas, como borboletas das quais só tivesse restado a larva. E essa larva agora se arrasta pelas fibras do coração e as devora.
Nikos Kazantzakis - Vida e Proezas de Alexis Zorbás

Lentamente, vou as deixando brincar dentro de mim. Larvas como lavas. Corroem, destroem; criam espaço para um virá. Um mistério desses mares de Creta ou sentada em uma pedra à beira do Pacífico. Oceano. Finito como esse pedaços de vida que parecem sonhos sobrevoando a terra da coca. Mariposas, borboletas, mulheres da vida.

Lentamente, me despeço. Daquele nosso levante: o nosso tempo de sonhos, agora, não passa de larvas. A crisálida se despedaça.