sexta-feira, 28 de junho de 2013

sobre três grandes mulheres - parte 1

Dos cachos louros e do sorriso maldoso

Nos meus blocos G, quando tinha aula em Velic - a casinha amarela do outro lado da rua do prédio do colégio, onde o UWC Mostar têm duas salas de aula - de Peace&Conflicts, sempre esperava me deparar com a minha tutor. A tutor num colégio IB é alguém "responsável por você" no âmbito acadêmico: é ela que olha sua notas, seu desempenho acadêmico e suas faltas com você. A tutor no UWC é bem mais do isso, porque além de ser o seu suporte acadêmico, ela é a pessoa com quem você compartilha os seus problemas residenciais ou sua saudade de casa ou seu problema com aquele aluno. E não é que eu fui pegar a tutor que, além de ser uma excelente pessoa, é uma psicóloga - por sinal, uma das melhores professores do mundo de IB Psychology -, sempre preocupada com seus tuties (aqueles que a tem como tutor). Não houve uma vez em que encontrei com ela no corredor que ela não tenha me perguntando como eu estava me sentindo ou o que eu estava fazendo nesses dias. Merima não é uma pessoa extramemente simpática. Ela não é do tipo que encanta a todos. Na verdade, ela tem um jeito bem durão, um olhar bem sério e bravo, que é o que lhe dá a autoridade que tem sobre os alunos. Ela é um pouco a Cruela Devil do colégio, de vez em quando, e não são tantas pessoas que gostam dela. Os alunos dela geralmente gostam dela, mas os outros, não. Por outro lado, sempre fui com a cara dela. Sempre gostei dela, daquele sorriso que ela me devolvia e quando ela me falava "é bom você não estar mentindo sobre estar bem" ou "seu sorriso sempre faz meu dia". Ela se irritava por eu não compartilhar minhas tristezas com ela, por eu sempre dizer que estava bem e eu só dava risada e falava pra ela que eu estava muito feliz. Foi ela que me apoiou quando eu tive meus pontos altos de insônia durante o semestre e acabava perdendo a primeira aula da manhã: ela apagou as minhas faltas - assim, sem mais nem menos, como se elas nunca tivessem acontecedo.
Não fui a única a ficar triste quando os boatos pela escola começaram: Merima deixaria a escola. Na verdade, fiquei um tanto quanto chateada que não teria aquela mulher na salinha de Velic pra visitar. E nunca mais pensaria aquilo que todos os alunos se perguntam: Velic cheira a Merima ou Merima cheira a Velic? Num dia desses em que nos encontramos no corredor, lancei uma ironia do tipo "você não tem algo pra me contar?". Ela levantou a sobrancelha da mesma maneira que havia levantado no semestre anterior quando eu fiquei sabendo que ela tinha se casado no final de semana anterior e havia feito a mesma pergunta. Ela disse que deveríamos sair para tomar um café e eu concordei, seriamente. Mas ela não precisou me dizer nada, porque os boatos já estavam à solta: ela se mudaria para a Malásia. Sim, porque o tal cara com quem ela tinha se casado - sem contar pra quase ninguém - era da Malásia, um cara que ela havia conhecido quando ela estudava lá. Eu não vou contar a história de amor deles - embora seja bem curiosa e interessante -, mas vou me limitar a dizer que ela estava se preparando pra deixar UWC Mostar, a escola na qual ela lecionava desde a primeira geração, o primeiro ano. Era uma perda pra nós e pra escola... Quem seria a minha tutor? Quem ensinaria psicologia pro meu primeiro ano (absurdamente viciado em psicologia...)?
Alguns dias antes de deixar Mostar, quando a maioria dos segundos anos já havia partido, me encontrei em Kariola com Merima para um café de despedida. Na verdade, era finalmente aquele café que não havíamos conseguido marcar antes, devido às nossas agendas lotadas. Foi muito agradável... Ela me contou um pouco sobre a Malásia e que estaria se mudando de Sarajevo (sim, embora desse aula em Mostar, ela morava em Sarajevo e ia pra lá todo final de semana) para lá em três semanas. Conversamos sobre a minha geração, sobre meus segundos anos... O momento que mais me assustou foi quando ela decidiu me dar conselhos sobre meus segundos anos. Foi uma pancada no estômago. Eu já tinha que aguentar todo dia os meus segundos anos falarem sobre como o segundo ano é tão mais puxado e difícil, mas eu tentava ignorar e não levar a sério... Mas quando Merima me deu um conselho pessoal e válido, me falando sobre como eu teria deadlines todos os dias, e que eu tinha que tomar cuidado pra não perdê-las e que eu ficaria, sim, muito mais estressada. Foi assustador. Eu ouvi com atenção, mas não sei se acreditei ou se quis levar tanto a sério.  O nosso café acabou quando Merima fez um pequeno discurso sobre a minha pessoa... Sobre o quão feliz ela estava por ter me conhecido e outras coisas que não acho necessário registrar aqui, mas que eu nem ninguém nunca esperaríamos ouvir saindo da boca de Merima. Ela mal sorriu e mal parecia haver emoção no que ela falava, mas parecia verdade. Até porque, ela não tinha nenhuma necessidade de falar nada sobre mim e só falou porque quis... Saímos de Kariola: ela com o guarda-chuva em mãos e eu com roupas de verão. Caminhamos até Velic e foi ali que a vi pela última vez, me dando um sorriso e apertando os olhos. Uma grande mulher, eu pensei.

terça-feira, 25 de junho de 2013

sonífera ilha

Um pequeno final, eu gosto de pensar. Na verdade, um final de um começo com pessoas que serão parte da minha vida eternamente. Foram cinco dias mais do que deliciosos com meus quase-irmãos.






quarta-feira, 19 de junho de 2013

entrar pra história não significa abaixar a tarifa

Ontem, ficamos para a história. Ontem, a cidade estava cheia de alegria, de festa, de luta. Dia 17 de Junho de 2013 foi um dia importante na Revolta da Tarifa (ou do Vinagre). A parte da manifestação da qual eu fiz parte marchou do Largo da Batata até o Palácio dos Bandeirantes. Era muita, muita gente. Era surreal ver tanta gente atrás de você e ali na sua frente. Quando passamos ao lado de um prédio todo espelhada, pude ver uma imensidão de gente atrás de mim e senti o movimento daquilo tudo. Mas, estando ali no meio, não me emocionei. Na verdade, pra vários dos meus amigos, foi o primeiro ato deles do MPL e lhes pareceu o melhor dia da vida deles. Pra mim, na maior humildade, passei por tédio e por aflição daquele povo com cartazes que não tinham nada - absolutamente nada - a ver com o MPL ou com a diminuição da tarifa do transporte público. Até um cartaz de "Não ao trabalho" eu vi! E foi me dando uma aflição muito grande quando gritos como "sou brasileiro com muito orgulho" e "olha que legal, o Brasil parou e nem é carnaval" eram os gritos que mais atraíam os manifestantes e que tomavam mais conta daquele ar pesado da Zona Sul. Mas admito que me causou arrepios quando alcançamos outra parte da manifestação na ponte estaiada e o grito de "não é só vinte centavos" alcançou um nível tão absurdo que, embora eu não concordasse com tal grito, segui a inércia daquele momento, subi na ponte estaiada e vivi aquele protesto louco e desfocado. O cansaço foi tão, tão grande depois de tudo aquilo: não tinha mais voz, minhas pernas ardiam e meus olhos só queriam se fechar. Cheguei em casa e tentei ler o máximo de notícias que podia, querendo saber o que a mídia estava falando do ato. E a verdade é que me deixou muito feliz que tenha sido um ato pacífico, mas horrível que o foco do movimento tenha se tornado outro.

Hoje na Sé, na concentração para o Sexto Grande Ato, havia um grupo imenso de pessoas nas escadarias em frente à Catedral da Sé, com cartazes que não tinham absolutamente nada a ver com a luta contra a tarifa (com exceção de um ou outro), A cantoria da concentração era só o hino nacional e "sou brasileiro com muito orgulho". Era difícil puxar os gritos realmente ligados ao MPL e até o "Vem pra rua, Vem contra o aumento" virou só e simplesmente "Vem pra rua vem", como se não tivéssemos mais lutando contra o aumento. Não acho que dá pra invalidar as manifestações e o fato de que o povo está saindo na rua - e percebendo que a política se faz na rua -, mas as manifestações perderam o seu foco. A luta pela diminuição da tarifa não tem que estar ligada ao amor pela pátria - muito pelo contrário. Eu quero mais é que essas pessoas guardem suas bandeiras do Brasil na gaveta e vão pra rua não pelos vinte centavos, mas pelos três reais e vinte centavos. Gritei com muito gosto que "Nossa luta é contra o aumento, hoje não é 7 de setembro". O ato foi um fracasso, pelo meu ponte de vista. Quando chegamos ao Viaduto Vinte e Cinco de Março, de repente, a parte da manifestação atrás de nós parou e nos mandou voltar. Ficamos um tempo ali no meio, num vazio entre a parte da frente e a parte de trás. Eu queria continuar, mas meus amigos resolveram voltar e seguir a parte de trás da manifestação, que seguiu de volta para a Sé e, depois, para a Prefeitura. Paramos no meio e resolvemos ir embora: sabíamos que essa parte da manifestação iria sair do controle e iria fazer algo complicado na frente da Prefeitura. Eu queria continuar, não sabiamos se realmente seria perigoso, mas fui sabia que era melhor voltar pra casa, já que o cansaço também já era imenso.

Não sei o que será do MPL ou dos protestos. Não sei se essa luta vai render em outras lutas. Pelo menos o Haddad admitiu que vai considerar revogar o aumento. Agradeço ao MPL e dou todo o crédito a eles por estarem lutando por tanto tempo. Conhecidos meus estão lá na organização e os vi na manifestação um tanto quanto cansados e acabados, mas eles não param de lutar: orgulho. Seguirei lutando com eles, mesmo que tenha que ficar muda durante parte do protesto e mesmo que tenha que encarar cartazes "contra a corrupção".

segunda-feira, 17 de junho de 2013

ainda desbotada

Tive um final de semana absurdamente intenso no âmbito social. Encontrei vários amigos: dei risada, me diverti, relembrei, esqueci, retomei, amei, senti saudade, me interessei, me surpreendi. Não parei em casa - nem sequer dormi em casa - e minhas horas de sono foram muito, muito limitadas e comecei a sentir um tipo de cansaço que eu não sentia há muito tempo. Mas a coisa mais importante do meu final de semana foi que eu não consegui evitar pensar nos protestos da semana anterior. Achei que depois de quinta-feira, ficaria acalmada e relembraria só hoje (amanhã?) no Quinto Grande Protesto. Errei. Não só minha sexta-feira quanto o meu final de semana me fizeram pensar o tempo inteiro naquilo. Talvez porque eu seja apaixonada por revoltas, revoluções, gritos e desabafos. Talvez porque uma parte de mim está traumatizada de inúmeras formas.
Meu final de semana incluiu momentos como quase esgoelar um PM quando Vitória (UWC Costa Rica 2013-2015) tentou entrevistá-lo e ele disse que "paz era com eles mesmo"; tomar um susto absurdo e pular pra o abraço de Roubicek quando o primeiro fogo de artifício foi lançado na Festa Junina da Escola Vera Cruz - me remeteu à primeira bomba de quinta-feira -; perceber que o barulho de helicóptero agora me deixa maluca, paranoica e assustada; e contar dezenas e dezenas de vezes tudo o que aconteceu comigo na quinta-feira, já que a maioria dos meus amigos não compareu ao ato. Pensei muito em tudo que aconteceu.
Li milhões de entrevistas, reportagens, notícias, todo tipo de artigo, além de ter assistido todos os tipos de relatos audio visuais sobre tudo o que tem acontecido. Deixei meus amigos espalhados pelo mundo informados sobre tudo o que está acontecendo e pensei com carinho nos meus amigos que estão na Turquia no seu Seed Project, mas que se depararam com spray de pimenta e gás lacrimogêneo no caminho pra casa. Pensei, especialmente, no que tudo isso significa. Não é uma revolução. Não é como se estivéssemos tentando derrubar um regime. Na verdade, as manifestações não deixaram de ser pelo aumento da tarifa de ônibus. O problema é que me assusta o fato de todos acharem que o objetivo das manifestações mudou - porque ele não mudou. Me assusta que agora o ódio pela PM tenha crescido em muitos de nós e que a violência pode vir para fora nesse próximo ato. Eu não sei o que é tudo isso - realmente não. Até conversar com meu querido ex-professor de História não me trouxe nenhuma clareza... Não sei no que isso vai dar. Não sei se vai dar em alguma coisa. Me assusta pensar que, no momento em que a tarifa do ônibus abaixar - idealizando que isso possa acontecer, embora pareça um tanto quanto irreal -, a multidão que grita nas ruas se acalmará e esquecerá que, sim, essa geração tem que, sim, lutar pela melhoria, pela mudança. Chega de assistir o PT e o PSDB em suas disputas políticas estúpidas: está mais do que na hora do povo ser ouvido. E não estou falando de acabar com a desigualdade social - infelizmente -, mas falando de que a democracia tem que chegar nesse país. Chega desse pensamento de que a única forma de intervir na política é votar a cada dois anos. É hora de sair da cadeira, de se mexer e se mobilizar. São Paulo não está sozinha! Mas agora preciso conter meu pensamento que voa longe e acalmar minha mente que tenta capturar algumas frações dessa loucura que é minha mente pra ir me deitar e dormir, porque amanhã vai ser outro dia.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio,
paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horasda tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Drummond de Andrade

sexta-feira, 14 de junho de 2013

a lua me chama: eu tenho que ir pra rua


Nos últimos três dias, venho sonhando e desejando o momento em que eu poderia me sentar em frente ao computador e escrever tudo o que a minha mente vem pensando, desenvolvendo, gritando e esbravejando. Posso escrever milhares de caracteres aqui, mas nunca conseguirei expressar tudo o que pasó e tudo que estou sentindo e experimentando nessa cidade de São Paulo.

Tudo começou um mês atrás, quando recebi um convite no facebook do evento do Primeiro Grande Ato Contra o Aumento da Passagem. Na hora, eu vi que era organizando pelo MPL (Movimento Passe Livre), que é formado por alguns amigos meus - cheguei até a participar de uma reunião do MPL anos atrás. Quis ir, mas naquela euforia e agitação de estar de volta em São Paulo, acabei esquecendo... E pouco vi na mídia sobre o primeiro ato. Foi só alguns dias depois, quando a minha querida Laila me convidou para ir no Segundo Ato que eu me lembrei. Meu jet lag me fez capotar no sofá da sala, sem me lembrar de colocar um alarme para ir ao ato. Pouco fiquei sabendo sobre o segundo ato. Até que, na terça-feira (11), fui ao cinema com um grande amigo, Renato, no Itaú Cultural da Augusta. Quando saímos do cinema, eu estava me dirigindo para casa e ele me disse que iria no protesto. Nem sabia que o Terceiro Ato seria naquele dia. Juntei-me a ele e alguns outros amigos na Praça do Ciclista. Pouco depois de termos chegados, a concentração acabou e a manifestação começou a caminhar pela Avenida Paulista.
Foi nesse momento que eu tive uns cliques na cabeça. Foi debaixo daquela chuva absurda que começou assim que chegamos na Consolação, com o meu pulmão fazendo muita força para gritar e com aquele resto de um saco de pipocas dentro da minha bolsa ficando ensopando, que eu me lembrei dessa sensação. Talvez tenham razão quando dizem que jovem tem sangue revolucionário. Esqueci do prazer de gritar na rua, de gritar pelos seus direitos, por algo que você acredita. Talvez eu não more mais aqui; mas se há algo que eu acredito é no poder do povo quando ele coloca sua voz para fora e na necessidade que o Brasil tem de ser ouvido para ser melhorado e crescer. O Brasil não é uma bosta, mas o Brasil não é nada perfeito. E eu estava ali, sorrindo, gritando, abraçando meus amigos e sentindo minha blusa molhada contra a minha pele e as gotas d'água entrando pela minha boca.
Mas a melhor sensação foi quando adentramos o tunel e eu olhei pra trás. Eu, Laila e Roubicek simplesmente viramos nosso rosto e nos deparamos com aquela multidão unida e animada, cantando e reclamando. Senti meu coração disparar, vivendo algo oposto à claustrofobia. Me sentia tão livre - mesmo que os policiais estivessem acompanhando a multidão. Vi pessoas pichando as paredes do túnel com frases como "3,20 NÃO". Vi pessoas carregando placas com frases geniais como "O meu direito de ir e vir custa R$ 6,40" ou "Saia do Facebook e venha às ruas". Senti São Paulo no seu melhor. Seguimos caminhando unidos. Foi chegando no Centro, avistando a Praça Roosevelt que eu me toquei o quanto havíamos marchado.  Nesse dia, eu e Roub subimos na estação da Sé assim que passamos pela Praça da Sé, pois Roub tinha uma prova do dia seguinte. Assim que desciamos para a estação do metrô, ouvimos gritos e nos demos conta de que a coisa tinha ficado feia.


Na quinta-feira (13), eu tive dúvidos. Eu queria participar do Quarto Ato, mas eu tinha medo - e soube admitir que o tinha. Mas não deixei que o medo me impedisse de ir nas ruas: eu sabia o quão fácil era ficar atrás do meu computador, no facebook, reclamando sobre as ações policiais e apoiando o MPL e os manifestantes que agem de forma pacífica; eu sabia o quão fácil era pra mim me contentar com o que está acontecendo - é inflação! -, aceitar o aumento da passagem de ônibus e metrô - afinal, eu nem moro aqui. Mas eu não quis. Eu não quis ficar no meu sofá assistindo filmes de Hitchcock porque eu quis ir pras ruas. Não só porque eu acho que está mais do que na hora da nossa geração sair nas ruas e lutar pelo que acredita, mas também porque eu sabia que essas manifestações tinham parado de ser completamente em volta dos 20 centavos de aumento (embora continuassem a ser seu principal foco). Eu quis sair na ruas porque eu não acho que isso vai se acalmar e ser esquecido. Talvez eu esteja sendo ingênua e boba, mas eu acho que esse será um momento da história de São Paulo que eu vou ter orgulho de ter feito parte. Não acho que seja o começo de uma revolução: acho que é o começo da movimentação do povo pelos seus direitos.
Eu desci na Consolação às 16h40 para encontrar uns amigos num bar na esquina da Santos com a Consolação, onde comíamos polenta e conversamos, nos preparando para ir para o protesto. Laila recebeu uma mensagem do irmão, avisando que as pessoas estavam sendo revistadas na saída da estação República do metrô. A coisa estava ficando tensa antes mesmo de ter começado. O pai de Laila mandou mensagens pedindo, por favor, que ela não fosse. Mas Laila e todos nós colocamos os pés no chão e pegamos um ônibus para o Centro às 18h. O nosso ônibus desviou do trajeto que deveria fazer e fomos obrigado a descer e ir à pé até a estação Anhangabau, onde a concentração havia acontecido. Nesse momento, vimos que um dos portões da estação havia sido fechado e vimos repórteres entrevistando pessoas que pareciam desesperadas querendo ir pra casa.
Eu adoro o centro de São Paulo. Ontem, Renato me falou o quanto o Centro lhe lembra as cidades Europeias, com seus prédios altos e brancos e grudados uns nos outros. Mas a beleza do Centro é aquela movimentação constante de pessoas de etnias e aparência completamente diferentes. Só no Centro você vê um homem pintado de prata arrastando um banquinho onde havia ficado parado o dia inteiro; só no Centro você vê aquelas luzes, e aquele lindo prédio do Theatro Municipal. E foi ali no Centro que corremos para alcançar a multidão que já tinha começado a marchar. Logo ali, depois do Theatro, vimos a polícia, que encurralava diversas pessoas. Vimos a PM batendo e prendendo um morador de rua. Passamos de cabeça baixa pela PM, mas sei que os 10 de nós queríamos cuspir naquelas pessoas de farda e capacete. Corremos para o meio da manifestação, usando nosso método da lhama para não nos perdermos. Acabamos perdendo 3 de nós, mas nos vimos ali, quase na boca da manifestação, gritando e cantando como nunca. Até que, de repente, ali quando entrávamos na Consolação, alguns manifestantes começaram a correr à nossa direita, ali na calçada. Estávamos muito, muito próximos daquilo. O problema quando alguém começa a correr é que o caos e o medo se espalham que nem praga: um corre, os outros correm. Atrás desses correndo, vinham outros gritando para todos se acalmarem, para ninguém correr. E ali, logo atrás, vinha a PM, com seus cessetetes, escudos, capacetes correndo na calçada. De repente, uma luz e um barulho ali diantes dos meus olhos e uma bomba de gás explodia na calçada, ao meu lado. Senti o gás quando meus olhos começaram a lacrimejar e a arder, minha cabeça girava e o pânico me tomava. Segurei a mão de Renato e fomos empurrados pela multidão para a calçada oposta, onde nos juntávamos num bolo. De repente, me virei, e dei de cara com umas 20 motos da PM. Era eu e as motos, não tinha nada no caminho. Eu e Renato fugimos, enquanto ouvíamos o barulho ensurdecedor que tentávamos deixar para trás. E era o mesmo barulho a cada 2 segundos. Não havia intervalo. E era aquele gás se espalhando pelo ar. Cobríamos nossa boca e nosso nariz com nossos cachecóis, casacos, máscaras. Uma mulher distribuia vinagre. Renato pegou um pouco na sua mão e dividiu entre nós dois. Nos encontramos na beira da Praça Roosevelt, em frente à entrada do túnel. Foi com muito gosto que eu gritava "Polícia fascista", com um ódio crescendo dentro de mim. A multidão havia sido separada em dois. Ninguém sabia o que fazer. A PM havia nos cercado. Pra todos os lados que eu olhava, havia mais e mais viaturas e soldados da PM. Alguns manifestantes queriam adentrar o túnel e continuar a marchar, mas muitos de nós reconhecemos a idiotice daquela ideia e os fizemos parar. Foi naquela hora que meu sangue esquentou e eu queria explodir com aquela euforia, enquanto gritávamos "O povo unido jamais será vencido!" e eu não queria que aquela cantoria acabasse nunca. De repente, as bombas se tornaram muito próximas outra vez e nós corremos para cima da praça, tentando escapar da polícia. Enquanto subíamos as escadas na frente de uma multidão de pessoas, ouvíamos uma bomba estourando atrás da outra, sem nem mesmo ter segundos de intervalo entre uma e outra. Eu comecei a gritar "Sem Violência" e puxei a cantoria, que durou enquanto todos corríamos praça acima e depois praça abaixo. Entramos numa rua, enquanto a maioria da manifestação descia para a Avenida Augusta. Cadê a Lorena?! A havíamos perdido! Esperamos até que ela nos encontrasse, enquanto ligavamos para ela gritando no telefone. Quando ela nos encontrou, resolvemos voltar para a manifestação. Estávamos a ponto de descer para Augusta, quando vimos a Tropa de Choque tendo a mesma ideia que nós. Corremos. Nos encontramos na Consolação, conversado e tentando decidir o que fazer. Todos nós ligando para pais e irmãos, avisando que estávamos bem, que provavelmente estaríamos voltando pra casa logo mais. Alguns de nós estavam muito pessimistas, dizendo que a manifestação já havia terminado, que o núcleo do protesto já tinha se dividido, que não tinha jeito agora, que o melhor a fazer era ir embora. Alguns de nós achavam que tínhamos que fazer tudo o possível para retornar à manifestação, nem que as consequências fossem complicadas quanto à PM. Conversamos com pessoas ao redor que também tinham fugido da confusão: havia um grupo de três amigos ouvindo o rádio, em que um jornal da Record anunciava que os manifestantes haviam começado o vandalismo e que a polícia tivera que intervir e que "tinha que descer porrada mesmo"; um grupo de pessoas nos contou que a manifestação estava agora na Augusta, tentando continuar com o plano de alcançar a Paulista. Não conseguíamos decidir o que fazer. Foi na hora que viaturas da polícia passaram e que um grupo de manifestantes perdidos do núcleo central cruzou nosso caminho que decidimos ir para a casa da Luli, que mora ali no centro: havíamos chegado à conclusão de que não tinhamos como voltar ao protesto, já que o núcleo estaria obviamente cercado pela polícia. Voltamos para a Praça Roosevelt e nos deparamos com um grupo de anarquistas marcarados jogando bombas caseiras em polícias. Uma imensidação de PMs subiu para a Praça Roosevelt, sem prestar muita atenção no nosso humilde grupo encostado contra a parede, tentando não chamar atenção. Assim que pudemos, descemos a rua até a Augusta e fomos nesse esquema de encostar na parede toda vez que a PM estava próxima. Muitas bombas foram lançadas logo ali do nosso lado e meus olhos nunca arderam tanto na minha vida enquanto xingávamos. Nos deparamos com um posto de gasolina e a PM bem ali, bloqueando o nosso caminho. A Luli tentou conversar com o policial, dizer que tinhamos que atravessar porque ela morava logo ali e o cara solta um "gente do bem não atravessa", o que queria dizer em claro e bom som que, se a gente desce um passo sequer pra frente, ele atacaria a gente sem qualquer piedade. Algumas bombas de efeito moral e gases mais tarde, acabamos procurando um caminho alternativo e descemos a Caio Prado. Demos de cara com um anarquista idiota destruindo um carro da Polícia Civil e começamos a gritar com ele, mandar ele parar, cantar "sem violência" e pedir paz. O Roberto gritou "Vocês anarquistas são muito autoritários!" e tivemos que nos segurar muito para não rir daquela frase genial, embora com medo de que o anarquista fosse jogar uma de suas bombas caseiras em nós por ódio. Logo em seguida, a Tropa de Choque desce a rua, bem na nossa frente, vindo na nossa direção. Encostamos no muro de uma construção e colocamos nossas mãos para cima. A PM desceu a rua, bem ali na nossa frente, apontando armas de balas de borracha pra nós e nos secando com um ódio que era recíproco. Um PM começou a gritar "Anda, caralho, seus filhos da puta!", nos xingando e nos fazendo andar na direção oposta para qual eles andavam. Quando Renato abaixou os braços, eles ficaram enraivecidos e gritaram mais ainda, mandando que ficássemos com as mãos para o alto. Afastamo-nos da Tropa de Choque e passeamos por uma mulher que havia levado uma bala de borracha no dedo, reclamando da dor. Seguimos tentando abstrair toda a situação e o ódio, nos mantendo calmos. Chegamos à casa de Luli por sorte.
Sentamo-nos na frente da televisão, assistindo à Globo News em silêncio. A mãe de Luli (uma fofa) nos deu uma bronca - pode-se dizer - e nos recebeu super bem. Senti-me um lixo sabendo que ainda havia tanta gente na rua em perigo enquanto estávamos ali, sãos e salvos, em frente à televisão. O silêncio era predominante. Foi um momento de pura tensão e sufocamento. Foi aquela sensação que eu não posso descrever em palavras. Vimos da janela muita coisa acontecendo na rua e tentamos entrar em contato com todos os nossos amigos que haviam ido para a manifestação. Tudo parecia certo. Agradeci pelo fato de que, embora todos estívessem falando do retorno da Ditadura Militar, não estávamos de fato nos anos 70 e ninguém havia desaparecido, sido morto ou torturado (pelo menos não dá forma que se costumava fazer). Mas eu sabia e sei que era só um começo. Foi a gota d'água que fez os brasileiros acordarem um pouquinho.


"Esses moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam porque quebram vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas incomodam muito mais porque nos obrigam a olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora, descobrimos que desaprendemos a sonhar." André Borges Lopes
Fotos por Laila Kontic

segunda-feira, 10 de junho de 2013

a cidade das luzes e anedotas

Me agarrou enquanto caminhávamos. Uma delas não quis atravessar a rua e causou nosso encontro com uma roda ao redor de casais dançantes que abafavam meu encantamento ao ver aquele prédio com pilares vermelhos outra vez em minha vida. Parei por minutos para olhar os pés - eu adoro encarar os pés de dançarinos. Depois encarei a luz que vinha da rua e que pouca luminosidade dava para os olhos de tais homens e mulheres, cercados por passantes, amigos, desconhecidos. "Vamos atravessar?", saí do meu transe e finalmente pude encarar aquele vão. Deixei minhas costas olharem aquela feirinha recém desmontada, ainda com estandes e lonas amarelas, enquanto meus olhos se voltaram para aquele prédio que é e sempre vai ser um símbolo da cidade luminosa. Meus olhos pousaram sobre o contorno vermelho de uma pessoa, enquanto a ansiedade, a nostalgia e a angústia cresciam na minha pele, nos meus olhos, nos meus ouvidos. Os carros passaram diante dos meus olhos como milhões de formigas andando para o formigueiro. Tudo que eu via dos automóveis era aquelas imagens tiradas em milésimos de segundos colocadas umas sobre as outras, mostrando os rastros dos carros que por ali haviam passado. A pessoa mudou de posição; seu contorno se tornou verde. Fui tirada da minha fascinação com um comentário risonho - do mesmo tipo daqueles dos quais eu tanto sentira falta. Pisamos na faixa de pedestres, nos lançando na rua e tropeçando no cinza e no branco, caminhando para um lugar distante. Quando eu pisei daquele outro lado, era como se tivesse atravessado todo um rio de símbolos que disparavam pela minha cabeça e eu senti a escuridão e a luminosidade da cidade num só piscar de olhos. "Eu sinto que agora tudo é muito grande e barulhento pra você". E, de repente, era aquele buraco, aquele vão, aquele concreto em cima de mim e aqueles ferros no chão como corpos abandonados e esquecidos em minha frente. Quis caminhar até a beira, até os degraus, até onde eu poderia ver aquele velho retorno abaixo e aqueles arranha-céus brilhantes e gigantescos diante da minha pessoa minúscula. Quando alcancei aquele lugar vazio que parecia reservado pra mim, enquanto outros espaços estavam ocupados por homens e mulheres e um violonista, por um segundo, foi como se todos estivessem me encarando, tentando entender porque eu respirava, ouvia e via tudo com tanta atenção, com tanto alumbramento e desprezo. E eu enxerguei toda a minha saudade dali de cima: tudo aquilo que não havia sentido por tantos meses e tudo aquilo que tinha ignorado pela última semana. Foram saudades tão contrastantes e tão bonitas que eu enchi o peito com aquela fumaça que nos persegue e soltei aquele ar, pisando sobre aqueles paralelepípedos que escondem pequenos brotos de plantinhas desesperadas a encontrar um espaço em meio a tanto. Fugi daquela sensação e outra vez meu devaneio foi interrompido por um chamado e, assim, nos fomos, deixando pra trás aquele prédio e aquelas mil sensações que se derramaram sobre minha cabeça naqueles poucos minutos na Avenida Paulista. Seguimos até a Augusta.
Na volta, andamos da Augusta até a estação Brigadeiro. E eu ainda num transe pequeno, escondido em algum lugar da minha alma que desejava pegar um papel e uma caneta e jogar tinta sobre meus pensamentos.

domingo, 9 de junho de 2013

uma amostra de saudade

É a primeira vez desde que deixei Mostar que parei pra pensar de verdade nos meus segundos anos. Embora tenha respondido inúmeras perguntas sobre as fotos minhas que foram parar no Facebook abraçada a Nikola, sobre a formatura, sobre a rotação de alunos e a chegada dos primeiros anos; não tinha parado comigo mesma pra revê-los em minha mente, amá-los e os extrañar. Uma notificação no facebook me levou a uma foto tirada somente duas semanas atrás - embora agora me valha uns bons meses - que trouxe a imagem de Celia (Espanha), Colleen (EUA), Liza (EUA) e Anna (Países Baixos) à minha mente. E ela está lá martelando desde então, como que me implorando que eu chore, que eu soluce de agonia por não ver Colleen e Liza nunca mais; como que me implorando que eu respire fundo e pense naquele bowl amarelo, naquele ursinho de pelúcia, naquele vestido roxo (que temo ter perdido) e naquela caixa inteira que me esperam em Mostar e que são heranças que por essas maravilhosas mulheres me foram deixadas. E eu me recuso a chorar, porque só consigo ser brega e cafona e rir, sorrir e estar de novo e de novo feliz pela continuidade da estrada de suas aventuras e pela perversidade do curto tempo que a vida nos proporcionou para aproveitarmos juntas. Só consigo vê-las em minha mente fazendo planos para o próximo final de semana, para que ilha da Croácia iriam, se iriam hitchhiking, de bicicleta ou de ônibus.
Acho que fico feliz de não ter tido uma segundo ano tão próxima como Saffron foi pra Rhea. Acho que fico feliz porque não tive um segundo ano brasileiro que virasse parte da minha família e sem o qual não conseguiria viver em Mostar. Acho que fico feliz porque me despedi com abraços silenciosos. Acho que, afinal, sou feliz até quando me flagro escrevendo coisas emocionais e bregas demais pro meu gosto - como isso daqui. Mas sou o que sou. E uma mulher sábia que eu tive o privilégio de conhecer essa semana sorria enquanto dizia que a gente é cult mas gosta mesmo é de uma novela das 8. Eu odeio novela. Mas eu adoro de paixão a vida.
Essa vida aqui que eu deixei pra trás é repleto de luxo e de privilégios da minha classe social. E eu criei meu próprio drama de novela: saí dessa bolha e fui viver no outro lado do mundo, onde eu pude pertencer sem uma agonia me corroendo pela culpa. A liberdade me trouxe noções e esperanças de mim mesma e da vida. Eu preciso atingir a vida dos outros com essa liberdade. Assim como Liza, Colleen, Celia e Anna atingiram uma parte de mim com a vontade e a liberdade de vida de cada gesto e cada movimento delas. Uma das coisas mais belas é pensar nessas pessoas incríveis que você teve a oportunidade de conhecer, e foi isso que Clara disse à Chloe quando esta chorava seus olhos pra fora.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

tengo mis dientes pa' cuando me sonrio

Não sei se minha vontade é relatar tudo o que me aconteceu, todos os sentimentos que me surgiram e todos os acontecimentos inesperados... Acho que vou deixar meus dedos me levarem rumo ao que eu assim desejar escrever.
Agora me encontro no Brasil. Depois de os meus 5 meses em Mostar passarem voando, aqui me encontro, sem lenço e sem documento: foi nessa terra que eu cresci. E eu assisti São Paulo enquanto o avião sobrevoava essa cidade gigantesca e fiquei espantada. O que eram aquelas luzes que não acabavam no horizonte?! Que cidade absurdamente gigante! E embora eu esteja ciente de seus 20 mil habitantes, nunca me dei conta... Acho que nunca tive essa noção que me surgiu naquele momento, olhando pela janelinha do avião, sentada no assento 31K ao lado de um senhor italiano, com Cien Años de Soledad no meu colo. Meus pais e Lucas (meu quase irmão) me esperavam no aeroporto e me levaram pra casa enquanto o sol nascia e aguentávamos o trânsito absurdo de Guarulhos até a Vila Madalena.
Fiz minha aparição no Santa Cruz às 9h50. Dei um susto tão tão grande nos meus amigos! Isa e Helo sabiam que eu iria, então me levaram pra dentro do Santa e simplesmente gritaram em pleno pátio "Gente, a So Moreira está aqui" e eu ria de nervoso, de emoção... Uns dias antes tinha tido um pesadelo e sonhado que eu fui no Santa e fui um tanto quanto rejeitada pelos meus amigos... Não foi o que aconteceu. Queria ter uma câmera pra filmar a reação das pessoas que ficaram completaram embasbacadas de me ver ali, de pé, em frente à eles com meus dreadlocks e minhas roupas de verão. Alguns amigos meus levaram mais de um minuto pra processar minha presença e finalmente conseguir me abraçar. Outros vieram correndo desesperadamente depois que os celulares começaram a trocar mensagens sobre a minha chegada e eu me deparei completamente cercada por um bando de faces conhecidas e amadas! E eu ria com a falsa braveza das pessoas por eu não ter avisado que estava vindo. Algumas pessoas tiveram que ficar tocando meu braço pra ter certeza de que eu era real... E estar no Santa, na verdade, foi um tanto quanto surreal.
Nas minhas férias no Brasil, em Dezembro/Janeiro, eu não tinha estado no Santa, já que também era período de férias. Voltar praquele pátio, praqueles corredores, aqueles banheiros e salas de aula foi surreal. Ao mesmo tempo que foi como se eu nunca tivesse ido embora e como voltar no tempo, foi como que um momento pra eu me dar conta de que a minha vida era outra, que aquilo não era mais parte de que eu sou, mas parte de quem eu fui e de quem mudou pra ser quem sou.
Mas acho que mais importante do que a minha retomada no português (incluindo o uso de "vejo vocês!" numa tradução de "see you!") e minha retomada nessa vida, foi a minha partida. Nunca é fácil deixar Mostar. Da última vez foi bem mais difícil, tenho que reconhecer. Sair de Mostar pra Winter Break praticamente partiu meu coração... Eu estava tão "into" tudo aquilo e "into" todas aquelas pessoas, aqueles projetos, aqueles acontecimentos e um certo alguém... O período pré-Winter Break foi o meu melhor em Mostar e eu sei dizer isso sem nenhuma dúvida. Não era a hora de voltar pra cá... Mas deu certo, foi um mês fantástico! Dessa vez, eu também não senti que era hora de deixar Mostar depois de todo aquele amor que flutuava com a formatura e com as despedidas e toda aquela arte que brilhava nas ruas de Mostar, mesmo com aquela chuva e aquele frio absurdos... Não foi fácil dar tchau pra Pauline ou pra Merima, professoras queridas que foram muito importantes pra mim e que vão nos deixar. Quero escrever depois com mais calma sobre minhas visitas à casa de Pauline, ao meu café com Merima e minha ida ao Old Bank com Clara... Mas agora deixo esse suspense de uma saudade que eu já tenho em mente, que não me deixa em lugar nenhum que eu vou, com essa figura de duas mulheres extremamente fortes e interessantes de seus próprios jeitos. Mas deixar Mostar foi aquele "sim" e aquele "não"... Já era mais do que hora dos meus segundos anos se despedirem daquela vida, colocarem os pés na estrada e no mundo, deixarem Mostar e tudo aquilo que eles amaram. E uma das partes mais difíceis de vê-los partindo é me dar conta de que eu vou ter que partir um dia também. E essa noite mesmo eu sonhei com Mostar: com as ruas, com palacinka, Old Bank, Old Town, o telhado, Old Man's e toda aquela cidade cinzenta e colorida que eu tanto aprecio. Acordei pensando que eu nunca vou deixar Mostar... Que Mostar sempre vai estar dentro de mim e vai ser uma parte de mim muito forte; e acho importante que eu comece a pensar nisso agora, que eu me dê conta que eu terei que me desapegar e seguir em frente. Pra muitas pessoas, deixar Mostar não é fácil e vi muitos terceiros anos que ainda são parte daquilo e que não se conformam com o fato de que a experiência deles no UWC Mostar acabou.
Meus últimos dias em Mostar foram... intensos - como tudo que diz respeito ao UWC. Depois que Aisa e Veronika partiram, tive que limpar o quarto e me encontrei deitada uma hora em cada cama, meio sem achar meu lugar naquele espaço. Levei dois dias (na verdade madrugadas sem dormir) pra poder empacotar todas as minhas coisas e enviá-las pra Susac na sexta-feira de manhã. Foi extremamente difícil decidir o que deixar pra trás e o que levar comigo pro Brasil... E ganhei tantas coisas de segundos anos que parecia que nunca ia caber naquelas caixas e malas espalhadas pelo meu quarto minúsculo. Foi aquela confusão que tomou conta do cômodo até que Elissavet (Grécia) adentrou meu quarto na sexta-feira de manhã, trazendo suas malas gigantescas que tanto me lembram do nosso Project Week, pronta para passar duas noites em Musala. Eli é uma das pessoas mais agradáveis do mundo! Pensamos em ser roommates, de tanto que gostamos uma da outra e de tanto que gostamos desses nossos sleepovers no quarto uma da outra, mas achamos que nossos níveis de estudo são muito diferentes e nos estressaríamos demais. Uri (Israel) adentrou meu quarto mais tarde, me acordando da minha soneca, e anunciou que dormiria ali também. Como gosto desse homem! Ele e seu ego entraram pela minha porta e não queria que ele fosse embora no dia seguinte...
Naquela noite, eu percebi de verdade verdadeira que todos nós estávamos virando - e já éramos - segundos anos. Até mandei uma mensagem pro meu primeiro ano brasileiro, porque senti essa necessidade... Mas foi naquela noite, em que todos os restantes em Mostar (a maioria que havia ficado para os SATs que eu também fiz) tiveram que se mudar para Musala e isso incluía praticamente só primeiros anos (com a exceção de Milad, Kim, Pasha, Saffron, Tijana e Berina). Nos encontramos na cozinha, com três violões, enquanto Erika (EUA) e Maxi (Áustria) cozinhavam. Elissavet começou a tocar inocentemente e nos rendeu horas e horas de cantoria e uma alegria e um amor tão intensos! Foi aquela sensação outra vez de "we're the love generation" que eu tanto amo. Foi quando sentamos no muro em frente à Musala e demos tanta risada com as histórias de Mevludin e Slobodan que eu abri aquele sorriso de despedida, de "tchau, Mostar! Mal posso esperar pra te ver em 2,5 meses!". Foi minha última vez sentada no muro com Saffron... E aquele era um lugar tão nosso! Mas eu não chorei com despedidas. Até porque odeio despedidas profundamente... Mas eu estava tão feliz e alegre que nem o fato de quase todos os remanescentes partirem na manhã seguinte abalou esse misto de emoções positivas. Tive que dar um ombro pra Lushik no dia seguinte, algo que não fazia há algum tempo e que me causou certa nostalgia do semestre passado. Lushik havia se mudado para o quarto que pertencia a Noor e Weronika, o quarto ao lado do meu, então abríamos as duas portas e circulávamos de um para o outro. Passamos horas na varanda (algo que eu disse a Weronika num email que escrevi hoje que tenho muita vergonha de não ter feito com ela) conversando e fomos dar nossa caminhada deliciosa por Old Town naquele dia 2 de junho ensolarado em que a chuva nos deu um descanso. Sentamos ao lado do rio e nos deliciamos com o silêncio e com a nossa cantoria desafinada.
Naquela noite, sentei no porão com Markus comendo pão de queijo e limpando o chão. Não foi triste. Muito pelo contrário. Foi quase como qualquer outro momento que passamos juntos, dando risada e pensando em coisas banais e não banais. Naquela noite, Megan (Reino Unido), uma terceiro ano fofíssima, reapareceu em Mostar (após já ter ido embora depois da formatura de seus primeiros anos) e pediu pra dormir no meu quarto porque não queria dormir sozinha no quarto da sua primeiro ano, Gwenno, que já havia partido. Ficamos horas conversando e partimos de manhã juntas no ônibus pra Dubrovnik. Deixei Mostar pra trás pra me deparar com o litoral croata, que é uma das coisas mais lindas que eu já vi. Minha viagem de 30 horas de volta pra casa dos meus pais em São Paulo foi longa e foi quase como Cien Años de Soledad.