Embora não tivesse chegado em sua meta, levantou subitamente e vestiu os brincos num ato automático.
“Onde você vai?”
“Não sei”, disse descendo as escadas. Tinha o pequeno caderno saindo pelo bolso das calças e um livro espiralado nas mãos.
Sentiu o frio das escadarias e saiu pra rua. Virou em uma esquina e estava a ponto de virar por um caminho conhecido quando se pegou virando pra outro lado. Subiu escadas e se deparou com uma igreja. Contornou-a e desceu ruas, meio sem prestar atenção. Havia esquecido a simplicidade de estar perdida em uma cidade, sem horário para estar em algum lugar, sem medo de realmente se perder.
Descobriu ruelas da pequena cidade até se deparar com a praça que já conhecia. 19 de Abril de 1921, onde havia aterrissado dias antes. Meio inusitadamente, acabou sentada em um banco, lendo. E embora tentasse mergulhar naquelas palavras, o mar lhe chamava. Chamava de forma tão árdua que pingos d’água começaram a cair sobre o papel no exato momento em que ela começara a reparar na existente textura das páginas por trás das palavras
Quando não pôde mais resistir, se levantou e caminhou sobre o convés que adentrava a privacidade do mar. Imaginou ver a cena de fora; uma garota com calças indonésias, brincos de cigana e pés descalços caminhando em direção ao mar, a ponto de se entregar à vastidão. Tinha considerado deixar o livro e o caderno pra trás, mas, por medo de tê-los arrastados pelo vento, caminhava com eles junto ao corpo. Prestava atenção no mar debaixo dos seus pés que podia ver por entre as frestas que separavam os pedaços de madeira.
Quando chegou à ponta do convés, sentou-se cuidadosamente e colocou as pernas para fora. Surpreendeu-se quando o frio não a tocou. Esperava que os pés alcançassem o mar e, dessa forma, o mar a alcançasse. Mas por causa dos limites do seu corpo – o tamanho compacto – não chegou a tocá-lo. E ele não a tocou de volta. Permaneceu ali sentada. Fechou os olhos deixando o vento bater. Um pingo caiu sobre a sua face. Queria tocar a água.
Levantou-se lentamente e virou com cuidado. Subiu para a rua e caminhou até outras escadas que havia avistado. Chegando nelas, colocou o livro no chão e o caderno sobre ele. Tirou as sandálias e desceu as escadas com as pontas dos pés, ansiando pelo frio que a esperava no final da escadaria. A água a alcançou antes que ela a alcançasse: uma leve onda a pegou de surpresa. Pisou na praia de pedras coberta pelo mar. Levantou a barra das calças e foi tomada pela sensação de sua energia escorrendo e se diluindo junto ao sal do mar. Fechou os olhos por uns instantes.
Os pingos da chuva continuavam caindo e decidiu que era hora de voltar. Subiu as escadas, vestiu as sandálias e encarou a cidade: o mar, os telhados laranjas das casas brancas e a estátua no topo da pequena capela. Retornou pela rua enquanto a chuva apertava levemente. Passou por uma senhora com bengala e esqueceu de dar olá, arrependendo-se momentos depois. Poderia ter voltado. Mas de que importava? Não falava a língua.
Pensou na entrevista com a escritora mexicana que havia lido algumas horas antes, porque pensava em escrever. Revendo isso, percebeu que ignorava a chuva. Numa tentativa de não o fazê-lo, passou a notá-lá com muita atenção, calculando quando a próxima gota cairia e sobre que parte de seu corpo.
Percebeu que se arrastava pelas ruas, pois não tinha ganas de voltar. A chuva a obrigava a fazê-lo. Mas não estaria retornando, mesmo que a chuva estivesse caindo, se não tivesse o caderno e o livro em mãos. Maldito papel e sua textura frágil. Pouco importava. Percebeu reconhecer o caminho, a pizzaria na esquina e logo se encontrou em frente à ruela do apartamento. A porta estava aberta. Talvez estivesse esquecido de fechá-la.
PS: Quincas e Humanitas desejam um feliz dia do livro!
Nenhum comentário:
Postar um comentário