Não lembro quais foram as exatas palavras que ela usou. Não lembro talvez porque eu tenha insistido em traduzir as palavras para que mais tarde eu as pudesse escrever em minha língua; ou talvez porque não importavam as palavras e, sim, o sentido que elas expressavam. Foi algo relacionado à importância do perdão em relação à importância do ressentimento. E eu concordei com a cabeça, debaixo do sol, deitada na grama, enquanto assoprávamos dentes-de-leão.
Talvez o fato de que eu não lembre exatamente as suas palavras esteja relacionado à maneira em que tenho vivido. Em fragmentos. Fragmentos isolados, anônimos, exaustos. Que nada mais são do que figuras que caminham na minha frente. Que nada mais é do que as palavras em francês ressonando e aqueles dedos pressionando botões numa máquina pequena e vermelha ao meu lado enquanto adormeço debaixo do sol. E viro marrom.
Esses fragmentos entre silêncios que não são estranhos; são marcas entre conhecidas que se encostam em paredes opostas ou em um pôster do Chaplin pensando em diversas modalidades de solidão e sexualidade. Uma performance. Também me disperso com as lembranças de uma infância alergênica, repleta de carrapatos - mas eles não perigosos, não? - e um cheiro que não consigo associar com nada.
Pão francês. Aquele da padaria da esquina, mas também aquele cozinhado por um bósnio que viveu uns bons anos na França. E um relato de lares roubados.
E me pergunto se há água. Não me imagino morando longe de água. E percebo que vivi a vida toda do lado de um calabouço. Um calabouço tão fixo como essa incapacidade de escrever algo livre. A incapacidade de desassociar isso daquilo. Ou aqui de mim.
Entre conversas embriagadas e sanduíches noturnos, há mais fragmentos. E há ainda mais fragmentos na falta de sono e naquele música que me traz uma paz imediata porque me lembra de uma criança dormindo no pé da cama. Criança quase emancipada, caindo no sono. Desfigura-se em conversas durante o almoço que acabam em emburramento e questionamento de mim mesma. Sem vergonha. E com pura culpa que me sobrevoa a minha mente toda vez.
Fragmento bom como aquelas cinco horas em que planejamos estudar e acabamos sentadas na minha cama. Ou ainda melhor como aquela risada por conta de uma máquina de lavar e risoto.
Ou cru como seres escondendo suas faces por medo do que veem. E quando me apaixonei por Kielowski três anos atrás, numa mera aula de filosofia, eu nunca imaginaria estar nesse fragmento de vida tão brutal. E cru.
Cru como peixe. Como isca. Mortal como a sobrevivência e as florestas nigerianas de um soza. Mortal como essas meras lembranças que são fragmentos. Tão mortais que me assusta escrevê-las. Imortal registro, fonte primária.
PS: O título dessa postagem foi completamente aleatório, relacionado à frase dita por minha colega de quarto enquanto relatava um acontecido do nosso dia para um querido primeiro ano. Essa frase foi ouvida no momento em que me peguei pensando em como nomear outro fragmento inútil e imoral como esse. E deixo outros fragmentos na pasta de rascunhos.
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