Desde quinta-feira, quando se deu início aos protestos em Mostar, tive uma sensação estranha. Mas, sexta-feira, quando um email foi enviado entre os alunos que se mobilizavam para se juntar à manifestação, eu imediatamente torci o nariz. Só conseguia ouvir uma voz soando na minha cabeça e dizendo "coxinha!".
Aquela fumaça preta subindo ao céu por volta das cinco da tarde me parecia um monstro se formando, pronto para engolir Mostar em um cenário comunista de um banco de vidro. Me parecia um sugador de energias que me invadia como uma lembrança sendo recuperada. E foi como se eu estivesse esperando. Esperando o som de balas de borracha, o som do aterrorizador dos helicópteros, a correria desesperadora. Mas o mesmo tempo em que eu esperava, eu sabia que era uma espera inútil. Eu sabia o quão triste era o fato de que eu não dava nenhuma credibilidade àquela fumaça.
Eu não soube de onde veio essa falta de credibilidade. Mas eu caminhava ali, e me estendia no meio do cruzamento, observando com um peso dentro de mim. Am I sick if I find this whole scene beautiful?, ela perguntou. Eu hesitei. Era como se uma arrogância tivesse subido ao meio peito e ficado ali, não me permitindo sentir nada por aquilo tudo. Mas eu respondi que não, porque eu via o céu amarelo, como no filme da noite anterior, e ouvia cada som como se estivessem sendo amplificados.
Me senti um fantasma. Uma carga energética ao nosso redor absorvia a energia do lugar, mas nos apagava. Outsiders. E coxinhas. Sem cantoria, sem gritos, assistiam - e assistíamos - aos prédios serem quebrados. Quando chegamos mais perto, podia ouvir o barulho de destroços. Não havia black blocs. Eram cidadãos enfurecidos. Sem emprego, sem direitos. Por mais que eu entendesse aquilo, o peso não saia de mim, porque eu reconhecia não entender nada. O cheiro forte não era meramente cheiro de queimado. Havia algo mais suave misturado ao odor de fogo queimando; algo que eu não soube definir.
Enquanto na Áustria se protesta sobre a Palestina; no Brasil se protesta sobre o transporte público, sobre a Copa. Na Bósnia, surgia, então, uma luta generalizada, que, aos meus olhos, não tinha força nenhuma. Não havia nenhum MPL da vida para falar na televisão, dar entrevistas. Eram só cidadãos comuns com cartazes que estabeleciam as dez vagas - e estúpidas - reivindicações. Uma das exigências chamou minha atenção: que os membros do governo renunciassem até o final da semana seguinte. Queria ter achado engraçado, mas tudo que havia era uma sensação monótona e vazia; aquilo provava que tudo que estava acontecendo não daria em nada. Que em uma, duas semanas, só restariam as lembranças e os prédios queimados com as janelas estilhaças na calçada. E aquela esperança que vinha às ruas retornaria ao seu estado cotidiano de frustração e ódio.
Passei o final de semana refletindo. Tendo que respirar fundo ao ouvir opiniões variadas... hipóteses e suposições insistentes. E me doía perceber que aquela esperança que brotava no corpo e na face dos meus amigos me fosse tão insignificante. A parte vazia de mim queria rir da cara deles e falar para pararem de acreditar. Mas não conseguia entender porque me sentia assim. Vejo aquela mesma arrogância de antes destruir minha energia, minha paciência; me calo e peço silêncio.
E quando o protesto de segunda-feira foi anunciado e a escola nos proibiu de participar, eu sabia dos coxinhas. Sabia que muitos se meteriam a ir. Mas uma grande amiga minha que eu rotulei como coxinha, me encarou com aquela paz de sempre estampada em seu rosto e me falou que queria fazer parte daquilo. Que queria estar apoiando a comunidade em que vive nos seus momentos bons e ruins. E foi como um soco na minha arrogância; aquela inocência tamanha. Talvez eu também quisesse estar ali. E as suposições pela manhã eram variadas. Não se sabia se seria algo violento ou somente uma manifestação pacífica.
De forma alguma. Não era medo o que eu sentia. Por favor, por que teria medo da polícia da Bósnia?! São cidadãos comuns como todos os outros participantes daquela manifestação e por isso não agiram contra os manifestantes no protesto anterior. Já vivi na pele de estar cara a cara com a polícia fascista brasileira. Não era medo. Era uma aflição, uma vergonha, uma confusão que tomava aquela arrogância que havia me dominado pelos últimos dias. Não sabia o que pensar. Mas ri quando a polícia anunciou que "só avançaria sobre os manifestantes se houvesse violência". Quantas vezes já havia escutado esse mesmo discurso?
O que consigo enxergar agora, enquanto estou doente e descansando na minha cama, é que realmente, não é um movimento organizado. E eu não estava enganada sobre o fato de que a desorganização desse movimentos e dos protestos não trariam nenhum tipo de reforma. Talvez, se surgir uma organização, uma liderança em Mostar (como surgiu em Tuzla), as coisas mudem. Por ora, não acontecerá nada. Mas o que vai ficar desse começo de fevereiro de 2014 no povo bósnio é a esperança. Porque é a primeira vez desde a guerra que o povo se mobiliza. Um político esloveno declarou que com esses protestos, a Bósnia dá um passo mais próximo à UE. Porque finalmente a população parou de simplesmente reclamar sentada no sofá. A Bósnia "acordou" como no Brasil em Junho. Acordou temporariamente. O que significa que pelo menos essas faíscas de luta podem prevalecer e se instaurar na mentalidade das pessoas - que é tão cruelmente negativa. "Irmandade e união", como dizia Tito. As população bósnia-bosníaca, bósnia-croata e bósnia-sérvia se coloca no mesmo patamar de solidão, de terem sido esquecidas em meio a tanta corrupção e nacionalismo.
Espero, do fundo do meu coração, que as minhas suposições estejam erradas. Que as reformas venham e signifique um crescimento, o movimento de uma sociedade pós-conflito para sair do estado de pós-conflito.
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