Nos últimos três dias, venho sonhando e desejando o momento em que eu poderia me sentar em frente ao computador e escrever tudo o que a minha mente vem pensando, desenvolvendo, gritando e esbravejando. Posso escrever milhares de caracteres aqui, mas nunca conseguirei expressar tudo o que pasó e tudo que estou sentindo e experimentando nessa cidade de São Paulo.
Tudo começou um mês atrás, quando recebi um convite no facebook do evento do Primeiro Grande Ato Contra o Aumento da Passagem. Na hora, eu vi que era organizando pelo MPL (Movimento Passe Livre), que é formado por alguns amigos meus - cheguei até a participar de uma reunião do MPL anos atrás. Quis ir, mas naquela euforia e agitação de estar de volta em São Paulo, acabei esquecendo... E pouco vi na mídia sobre o primeiro ato. Foi só alguns dias depois, quando a minha querida Laila me convidou para ir no Segundo Ato que eu me lembrei. Meu jet lag me fez capotar no sofá da sala, sem me lembrar de colocar um alarme para ir ao ato. Pouco fiquei sabendo sobre o segundo ato. Até que, na terça-feira (11), fui ao cinema com um grande amigo, Renato, no Itaú Cultural da Augusta. Quando saímos do cinema, eu estava me dirigindo para casa e ele me disse que iria no protesto. Nem sabia que o Terceiro Ato seria naquele dia. Juntei-me a ele e alguns outros amigos na Praça do Ciclista. Pouco depois de termos chegados, a concentração acabou e a manifestação começou a caminhar pela Avenida Paulista.
Foi nesse momento que eu tive uns cliques na cabeça. Foi debaixo daquela chuva absurda que começou assim que chegamos na Consolação, com o meu pulmão fazendo muita força para gritar e com aquele resto de um saco de pipocas dentro da minha bolsa ficando ensopando, que eu me lembrei dessa sensação. Talvez tenham razão quando dizem que jovem tem sangue revolucionário. Esqueci do prazer de gritar na rua, de gritar pelos seus direitos, por algo que você acredita. Talvez eu não more mais aqui; mas se há algo que eu acredito é no poder do povo quando ele coloca sua voz para fora e na necessidade que o Brasil tem de ser ouvido para ser melhorado e crescer. O Brasil não é uma bosta, mas o Brasil não é nada perfeito. E eu estava ali, sorrindo, gritando, abraçando meus amigos e sentindo minha blusa molhada contra a minha pele e as gotas d'água entrando pela minha boca.
Mas a melhor sensação foi quando adentramos o tunel e eu olhei pra trás. Eu, Laila e Roubicek simplesmente viramos nosso rosto e nos deparamos com aquela multidão unida e animada, cantando e reclamando. Senti meu coração disparar, vivendo algo oposto à claustrofobia. Me sentia tão livre - mesmo que os policiais estivessem acompanhando a multidão. Vi pessoas pichando as paredes do túnel com frases como "3,20 NÃO". Vi pessoas carregando placas com frases geniais como "O meu direito de ir e vir custa R$ 6,40" ou "Saia do Facebook e venha às ruas". Senti São Paulo no seu melhor. Seguimos caminhando unidos. Foi chegando no Centro, avistando a Praça Roosevelt que eu me toquei o quanto havíamos marchado. Nesse dia, eu e Roub subimos na estação da Sé assim que passamos pela Praça da Sé, pois Roub tinha uma prova do dia seguinte. Assim que desciamos para a estação do metrô, ouvimos gritos e nos demos conta de que a coisa tinha ficado feia.
Na quinta-feira (13), eu tive dúvidos. Eu queria participar do Quarto Ato, mas eu tinha medo - e soube admitir que o tinha. Mas não deixei que o medo me impedisse de ir nas ruas: eu sabia o quão fácil era ficar atrás do meu computador, no facebook, reclamando sobre as ações policiais e apoiando o MPL e os manifestantes que agem de forma pacífica; eu sabia o quão fácil era pra mim me contentar com o que está acontecendo - é inflação! -, aceitar o aumento da passagem de ônibus e metrô - afinal, eu nem moro aqui. Mas eu não quis. Eu não quis ficar no meu sofá assistindo filmes de Hitchcock porque eu quis ir pras ruas. Não só porque eu acho que está mais do que na hora da nossa geração sair nas ruas e lutar pelo que acredita, mas também porque eu sabia que essas manifestações tinham parado de ser completamente em volta dos 20 centavos de aumento (embora continuassem a ser seu principal foco). Eu quis sair na ruas porque eu não acho que isso vai se acalmar e ser esquecido. Talvez eu esteja sendo ingênua e boba, mas eu acho que esse será um momento da história de São Paulo que eu vou ter orgulho de ter feito parte. Não acho que seja o começo de uma revolução: acho que é o começo da movimentação do povo pelos seus direitos.
Eu desci na Consolação às 16h40 para encontrar uns amigos num bar na esquina da Santos com a Consolação, onde comíamos polenta e conversamos, nos preparando para ir para o protesto. Laila recebeu uma mensagem do irmão, avisando que as pessoas estavam sendo revistadas na saída da estação República do metrô. A coisa estava ficando tensa antes mesmo de ter começado. O pai de Laila mandou mensagens pedindo, por favor, que ela não fosse. Mas Laila e todos nós colocamos os pés no chão e pegamos um ônibus para o Centro às 18h. O nosso ônibus desviou do trajeto que deveria fazer e fomos obrigado a descer e ir à pé até a estação Anhangabau, onde a concentração havia acontecido. Nesse momento, vimos que um dos portões da estação havia sido fechado e vimos repórteres entrevistando pessoas que pareciam desesperadas querendo ir pra casa.
Eu adoro o centro de São Paulo. Ontem, Renato me falou o quanto o Centro lhe lembra as cidades Europeias, com seus prédios altos e brancos e grudados uns nos outros. Mas a beleza do Centro é aquela movimentação constante de pessoas de etnias e aparência completamente diferentes. Só no Centro você vê um homem pintado de prata arrastando um banquinho onde havia ficado parado o dia inteiro; só no Centro você vê aquelas luzes, e aquele lindo prédio do Theatro Municipal. E foi ali no Centro que corremos para alcançar a multidão que já tinha começado a marchar. Logo ali, depois do Theatro, vimos a polícia, que encurralava diversas pessoas. Vimos a PM batendo e prendendo um morador de rua. Passamos de cabeça baixa pela PM, mas sei que os 10 de nós queríamos cuspir naquelas pessoas de farda e capacete. Corremos para o meio da manifestação, usando nosso método da lhama para não nos perdermos. Acabamos perdendo 3 de nós, mas nos vimos ali, quase na boca da manifestação, gritando e cantando como nunca. Até que, de repente, ali quando entrávamos na Consolação, alguns manifestantes começaram a correr à nossa direita, ali na calçada. Estávamos muito, muito próximos daquilo. O problema quando alguém começa a correr é que o caos e o medo se espalham que nem praga: um corre, os outros correm. Atrás desses correndo, vinham outros gritando para todos se acalmarem, para ninguém correr. E ali, logo atrás, vinha a PM, com seus cessetetes, escudos, capacetes correndo na calçada. De repente, uma luz e um barulho ali diantes dos meus olhos e uma bomba de gás explodia na calçada, ao meu lado. Senti o gás quando meus olhos começaram a lacrimejar e a arder, minha cabeça girava e o pânico me tomava. Segurei a mão de Renato e fomos empurrados pela multidão para a calçada oposta, onde nos juntávamos num bolo. De repente, me virei, e dei de cara com umas 20 motos da PM. Era eu e as motos, não tinha nada no caminho. Eu e Renato fugimos, enquanto ouvíamos o barulho ensurdecedor que tentávamos deixar para trás. E era o mesmo barulho a cada 2 segundos. Não havia intervalo. E era aquele gás se espalhando pelo ar. Cobríamos nossa boca e nosso nariz com nossos cachecóis, casacos, máscaras. Uma mulher distribuia vinagre. Renato pegou um pouco na sua mão e dividiu entre nós dois. Nos encontramos na beira da Praça Roosevelt, em frente à entrada do túnel. Foi com muito gosto que eu gritava "Polícia fascista", com um ódio crescendo dentro de mim. A multidão havia sido separada em dois. Ninguém sabia o que fazer. A PM havia nos cercado. Pra todos os lados que eu olhava, havia mais e mais viaturas e soldados da PM. Alguns manifestantes queriam adentrar o túnel e continuar a marchar, mas muitos de nós reconhecemos a idiotice daquela ideia e os fizemos parar. Foi naquela hora que meu sangue esquentou e eu queria explodir com aquela euforia, enquanto gritávamos "O povo unido jamais será vencido!" e eu não queria que aquela cantoria acabasse nunca. De repente, as bombas se tornaram muito próximas outra vez e nós corremos para cima da praça, tentando escapar da polícia. Enquanto subíamos as escadas na frente de uma multidão de pessoas, ouvíamos uma bomba estourando atrás da outra, sem nem mesmo ter segundos de intervalo entre uma e outra. Eu comecei a gritar "Sem Violência" e puxei a cantoria, que durou enquanto todos corríamos praça acima e depois praça abaixo. Entramos numa rua, enquanto a maioria da manifestação descia para a Avenida Augusta. Cadê a Lorena?! A havíamos perdido! Esperamos até que ela nos encontrasse, enquanto ligavamos para ela gritando no telefone. Quando ela nos encontrou, resolvemos voltar para a manifestação. Estávamos a ponto de descer para Augusta, quando vimos a Tropa de Choque tendo a mesma ideia que nós. Corremos. Nos encontramos na Consolação, conversado e tentando decidir o que fazer. Todos nós ligando para pais e irmãos, avisando que estávamos bem, que provavelmente estaríamos voltando pra casa logo mais. Alguns de nós estavam muito pessimistas, dizendo que a manifestação já havia terminado, que o núcleo do protesto já tinha se dividido, que não tinha jeito agora, que o melhor a fazer era ir embora. Alguns de nós achavam que tínhamos que fazer tudo o possível para retornar à manifestação, nem que as consequências fossem complicadas quanto à PM. Conversamos com pessoas ao redor que também tinham fugido da confusão: havia um grupo de três amigos ouvindo o rádio, em que um jornal da Record anunciava que os manifestantes haviam começado o vandalismo e que a polícia tivera que intervir e que "tinha que descer porrada mesmo"; um grupo de pessoas nos contou que a manifestação estava agora na Augusta, tentando continuar com o plano de alcançar a Paulista. Não conseguíamos decidir o que fazer. Foi na hora que viaturas da polícia passaram e que um grupo de manifestantes perdidos do núcleo central cruzou nosso caminho que decidimos ir para a casa da Luli, que mora ali no centro: havíamos chegado à conclusão de que não tinhamos como voltar ao protesto, já que o núcleo estaria obviamente cercado pela polícia. Voltamos para a Praça Roosevelt e nos deparamos com um grupo de anarquistas marcarados jogando bombas caseiras em polícias. Uma imensidação de PMs subiu para a Praça Roosevelt, sem prestar muita atenção no nosso humilde grupo encostado contra a parede, tentando não chamar atenção. Assim que pudemos, descemos a rua até a Augusta e fomos nesse esquema de encostar na parede toda vez que a PM estava próxima. Muitas bombas foram lançadas logo ali do nosso lado e meus olhos nunca arderam tanto na minha vida enquanto xingávamos. Nos deparamos com um posto de gasolina e a PM bem ali, bloqueando o nosso caminho. A Luli tentou conversar com o policial, dizer que tinhamos que atravessar porque ela morava logo ali e o cara solta um "gente do bem não atravessa", o que queria dizer em claro e bom som que, se a gente desce um passo sequer pra frente, ele atacaria a gente sem qualquer piedade. Algumas bombas de efeito moral e gases mais tarde, acabamos procurando um caminho alternativo e descemos a Caio Prado. Demos de cara com um anarquista idiota destruindo um carro da Polícia Civil e começamos a gritar com ele, mandar ele parar, cantar "sem violência" e pedir paz. O Roberto gritou "Vocês anarquistas são muito autoritários!" e tivemos que nos segurar muito para não rir daquela frase genial, embora com medo de que o anarquista fosse jogar uma de suas bombas caseiras em nós por ódio. Logo em seguida, a Tropa de Choque desce a rua, bem na nossa frente, vindo na nossa direção. Encostamos no muro de uma construção e colocamos nossas mãos para cima. A PM desceu a rua, bem ali na nossa frente, apontando armas de balas de borracha pra nós e nos secando com um ódio que era recíproco. Um PM começou a gritar "Anda, caralho, seus filhos da puta!", nos xingando e nos fazendo andar na direção oposta para qual eles andavam. Quando Renato abaixou os braços, eles ficaram enraivecidos e gritaram mais ainda, mandando que ficássemos com as mãos para o alto. Afastamo-nos da Tropa de Choque e passeamos por uma mulher que havia levado uma bala de borracha no dedo, reclamando da dor. Seguimos tentando abstrair toda a situação e o ódio, nos mantendo calmos. Chegamos à casa de Luli por sorte.
Sentamo-nos na frente da televisão, assistindo à Globo News em silêncio. A mãe de Luli (uma fofa) nos deu uma bronca - pode-se dizer - e nos recebeu super bem. Senti-me um lixo sabendo que ainda havia tanta gente na rua em perigo enquanto estávamos ali, sãos e salvos, em frente à televisão. O silêncio era predominante. Foi um momento de pura tensão e sufocamento. Foi aquela sensação que eu não posso descrever em palavras. Vimos da janela muita coisa acontecendo na rua e tentamos entrar em contato com todos os nossos amigos que haviam ido para a manifestação. Tudo parecia certo. Agradeci pelo fato de que, embora todos estívessem falando do retorno da Ditadura Militar, não estávamos de fato nos anos 70 e ninguém havia desaparecido, sido morto ou torturado (pelo menos não dá forma que se costumava fazer). Mas eu sabia e sei que era só um começo. Foi a gota d'água que fez os brasileiros acordarem um pouquinho.
"Esses moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam porque quebram vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas incomodam muito mais porque nos obrigam a olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora, descobrimos que desaprendemos a sonhar." André Borges LopesFotos por Laila Kontic
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