Mostar, 11 de setembro de 2013
11h40, quarta-feira, Spanish Room/TOK Class
Entre cafés e cigarros, a cultura da Herzegovina (a região do país em que Mostar se situa) é fascinante. Na maior parte do tempo, esquecemos que Mostar tem uma parte muito grande cultural; esquecemos que há coisas além da guerra e da Iugoslávia: Mostar viver o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano e sempre foi um ponto de encontro das diferente etnias balcânicas. Entre o café e os cigarros, não há muito cinema, nem muita arte plástica; há muita literatura, mas, infelizmente, não compreendo a língua para poder ser encantada e fascinada por Aleksa - o escritor que deixou o nome para o Club Aleksa, num beco na beira do Neretva. Interessante que as palavras "canção" e "poema" sejam a mesma nas línguas locais, numa composição artística-linguística tão bela.
Curiosamente, uma grande parte da cultura da Bósnia-Herzegovina é, assim como no Brasil, ligada ao futebol. Mas, ao contrário do Brasil, aqui e mais nacional do que regional. A divisão entre as etnias se reflete muito claramente no futebol: os bósnios-croatas torcem pra Croácia, os bosniaks (ou muçulmanos) torcem para a Bósnia-Herzegovina e os bósnios-sérvios torcem para a Sérvia. Os jogos de futebol fazem de Mostar uma cidade assustadora e interessante. O Colégio sempre nos aconselha a não sair pela cidade em noites de jogos. Ano passado, quando a Bósnia&Herzegovina jogou contra a Grécia, a escola ficou bem apavorada com o fato de que tínhamos uma festa naquela noite e eu não entendi aquilo muito bem. Nas últimas duas semanas, ficou mais claro pra mim. Semana passada, a rua de Musala de repente ficou muito amarela e azul - as cores da bandeiras bósnia. Nunca tinha visto aquela bandeira enorme balançando ao vento em frente ao bar vizinho a Musala. Nunca tinha visto o bar tocar músicas num volume tão alto - e olha que eles tocam música muito alto debaixo da minha janela. Ter uma roommate bosiak e outra bósnia-sérvia - as duas sempre gozando do nacionalismo, sempre cantando músicas nacionalistas de brincadeira pra acordar uma a outra - me trouxe uma perspective engraçada enquanto elas traduziam pra mim a letra das canções horríveis que ouvimos do nosso quarto, xingando os sérvios e afirmando a superioridade bosniak. Naquela noite, a Bósnia-Herzegovina perdeu contra a Eslováquia e a cidade ficou calada. Ontem, quando voltava pra casa depois de passar 9h na escola, andando com Malak (Egito), reconheci aquele cenário de bandeiras azuis e amarelas. Mais tarde, quando voltava do Climbing Hall com Lucas (Brasil), Sjur (Noruega) e Chiara (Austria) ouvi os gritos de celebração pelo primeiro. Lucas tirou sarro que aquilo quase o fazia sentir-se em casa e eu falei que era quase como se o Corinthians tivesse feito um gol em SP (só que não). Encontrei Erika e Hannah (EUA) em frente a Musala, as duas conversando sobre aquela situação. Fiquei ali na Wall de Musala ouvindo suas reflexões de típicas estadunidenses, de quem nunca viveu uma coisa intensa como essa, de uma coisa tão grande por um esporte como é aqui. Quando a partida acabou, a rua de Musala foi à loucura. Dezenas de pessoas correndo, gritando, quebrando garrafas de vidro, soltando fogos de artifício. Chegava a ser assustadoramente intimidador. Chiara, Lucas, Malak e Hannah tinham que voltar pra Susac, então Erika e eu resolvemos acompanhá-los, como as experientes segundos anos que somos - mais tarde eu ri dessa nossa ação, pensando no que teríamos feito pra protegê-los. Chiara tinha que buscar sua bicicleta na Spanish Square e tínhamos que passar por Musala Square onde todos os bosniaks da cidade pareciam estar concentrados. Foi assustador e decidimos dar uma volta gigantesca pela ponte de Del Rio e virando na Boulevar com Chiara e Erika. Encontramos uma tropa de choque ali e pensei em todos os protestos de Junho enquanto flashbacks vinham à minha mente. Passamos de cabeça baixa. Quando retornamos, eu e Erika, pelo caminho tradicional da escola para Musala, nos deparamos com as grandes lixeiras de Mostar espalhadas pelo asfalto da rua, soltando fumaça de um fogo recém apagado. e com vidros quebrados por pedras. Fiquei com aflição das pausas que fazíamos para que Erika fotografasse, mas ela definitivamente conseguiu fotos interessantíssimas. Em Musala Square, havia uma multidão de torcedores. Era quase uma parada quando os carros passavam buzinando em ritmo de celebração. Havia um caminhão carregando vários homens sem camisa - mostrando sua masculinidade? - que gritavam de forma alucinada com bandeiras e faixas.
Chegamos em Musala on time para o check-in. Ena (Zenica - BiH) nos contou sobre o conflito que ela assistiu em Spanish Square, com quase 20 homens jogando pedras do lado croata da cidade, na Boulevar, procurando briga, gritando para que os policiais parassem de ser covardes e atravessassem para o "lado de cá". Foi muito simbólico pra que eu pudesse entender outra vez que o prédio do colégio e a Spanish Square são, de ato, o espaço de divisão. Os policias estavam parando todos que "tentavam cruzar para o lado croata". Mas quanto às questões futebolísticas, fiquei chocada. Vivi a vida inteira na cultura do futebol, na cultura dos "Clássicos" Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos e nunca vi algo assim. Claro que há violência. Que a torcida, a massa de gente, leva, várias vezes, a violentas brigas e extrema competitividade. Mas não poder usar as cores do time adversário na rua é demasiadamente chocante. O conflito étnico refletido nessa paixão pelo futebol.
(pela falta de tempo para escrever, deixo aqui palavras escritas no caderno cor de vinho que carrego na mochila)
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