quinta-feira, 8 de agosto de 2013

um punhado de páginas de um caderno vermelho

Strasbourg, 6h46, quinta-feira, "drop-off and pick up square"

Depois de cair das escadas de um lugar qualquer e me encontrar passando muito frio, ensopada, debaixo da chuva constante do noroeste da Europa; caminhei pelo sudoeste do centro de Bruxelas, um lugar que me fez pensar em escravidão, em colonialismo, em exploração. "I felt so white", Amber me revelou algumas horas depois. Ela ficou nervosa com o "clima" daquela rua, como me disse, e eu dei risada daquele nervosismo dela de quem só anda em ruas tranquilas e extremamente seguras. Passávamos por lojas e feiras de frutas. Ninguém falava francês ou flamengo, falavam línguas que eu completamente desconheço. Me fez entender o que é imigração. Porque os negros belgas são negros puros. Não gosto do conceito "puridade" pelo seu valor pejorativo, herança do nazismo, fascismo e muitas coisas antes disso. Mas o que quero dizer com puro - e uso essa palavra aqui numa inocência muito grande - é que eles me parecem ter o sangue 100% africano, 100% negro. Venho de um território geográfico - o que costumamos chamar de país, mas ainda me falta entender o conceito do 'Brasil País' ou da 'Belíndia" - em que ninguém é imigrante e, também, ao mesmo tempo, todo somos (tirando os 0,5% da população que constitui os indígenas). Os negros brasileiros são uma mistura doida de tudo e mais um pouco - o que não os torna menos negros, não me entenda mal. E entendi um pouco mais da população brasileira, da inserção numa cultura que é uma mistura de todas. Mas ali, naquele país europeu minúsculo, vi homens, mulheres e crianças imigrantes, lutando pra se inserir naqueles idiomas locais, no modo de viver europeu. Naquela região da cidade, quanto tivemos que parar na calçada para aguardar o semáforo de pedestres, saquei a minha câmera para fotografar aquele lugar que me parecia quase que perdido no tempo-espaço; flagrei um homem à nossa esquerda assistindo-me colocar a câmera de volta na bolsa. Ele não foi discreto. E assim que o semáforo ficou verde - por que diabos falamos em português que o "semáforo abre"?! continuo acidentalmente traduzindo -, segurei Amber pelo braço e fiz questão de andar atrás do homem, que não parava de lançar olhares pra trás. Sentia o sangue ferver e subir meu corpo. Quem ele pensava que era pra sequer pensar em roubar a minha câmera?! Odiei aquele homem. Ele quis tomar de mim meu instrumento de arte - algo que já foi meu violão -, só isso. (...) Assim que atravessamos a rua, puxei Amber para o meio daquela confusão de barraquinhas de uma instalação de um parque de diversões, sem saber se aquela era uma sábia decisão ou não. Me enfiei num espaço entre cabos, caixas de papelão e lixo despejado, tentando enxergar o homem. Avistei-o ir embora, ainda olhando pra trás, nos procurando - procurando a minha câmera -, mas desistindo de armar algum tipo de emboscada. Não consegui respirar de alívio; só conseguia ter muito ódio. Tomamos um caminho alternativo e eu só fazia xingar aquele ser humano que quase tomou minha câmera. Talvez só uma hora depois meu sangue tenha esfriado, quando já havia acenado pra Amber partindo em seu trem de volta pra Ronse, enquanto me encontrava ali sozinha na plataforma 9 (10? 11? Nem lembro mais) da Bruxelles-Nord, abaixando minha pressão. (...) Naquela plataforma à minha frente, em que as pessoas se encontravam tão distantes umas das outras, imersas em seus próprios mundos, um grupo parecia mudar a atmosfera, dançando e rindo alto. E fui muito mais calma caminhando até a estação da Eurolines, onde me encontrei cercada por negros e uns poucos brancos europeus - "I felt so white", pensei. Uma briga acontecia ali fora, no meu campo de visão. Amber havia me avisado que aquela era uma parte mais perigosa da cidade. Esperei algumas horas e peguei um ônibus num estado de aflição de tudo aquilo, da escuridão, de uma língua que não falo, mas um pouco acalmada pelas reflexões de Caetano Veloso; quis muito encontrar Sarah logo para dar-lhe um longo abraço e me sentir segura. (...)
Agora me sinto cansada, mas sem fome - embora tenha tido minha última refeição ontem aproximadamente às 16h. Me sinto segura em Strasbourg, nessa praça onde os ônibus vem e vão, sentada num banco um pouco molhado e... aguardando.
Sem mais,
Sofia

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