segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ferozes larvas (ou metamorfose ao avesso)

São sensuais e carregadas de tristeza essas horas de chuva fina, como se a alma, essa borboleta, nela fosse impregnada e submergisse na terra. Vêm ao pensamento todas as lembranças amargas depositadas no coração - separações de amigos, sorrisos masculinos que se apagaram, esperanças que também perderam as asas, como borboletas das quais só tivesse restado a larva. E essa larva agora se arrasta pelas fibras do coração e as devora.
Nikos Kazantzakis - Vida e Proezas de Alexis Zorbás

Lentamente, vou as deixando brincar dentro de mim. Larvas como lavas. Corroem, destroem; criam espaço para um virá. Um mistério desses mares de Creta ou sentada em uma pedra à beira do Pacífico. Oceano. Finito como esse pedaços de vida que parecem sonhos sobrevoando a terra da coca. Mariposas, borboletas, mulheres da vida.

Lentamente, me despeço. Daquele nosso levante: o nosso tempo de sonhos, agora, não passa de larvas. A crisálida se despedaça.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

faraós sem olhos

Ele me deixa desolada. Me impede de fazer o que quero. Me prende de uma forma tão agressiva e violenta. Não me deixa escapar, não me deixa fugir, me encarcera. Ele me dá tapas, me causa dor, me sacode sem piedade. Ele: meu corpo. Minha própria tumba. Esse corpo que se arrasta de volta pra casa, carregando pensamentos de faraós e de praças em chamas. Como se eu quisesse arrancar minha pele, escapar, gritar, esbravejar e fugir. Queria às vezes fugir do meu próprio corpo. Krabat.

Queria poder desviscerar a mim mesma. Mas só a pele. Como arrancando um casaco. O que somos nós, essa coisa presa dentro do nosso corpo?

Não há nada que me irrite mais do que quando nosso corpo não nos permite fazer tudo o que queremos por conta de uma exaustão inexplicável. Não é a falta de sono, te lo juro.

"They would sometimes even lose their two eyes."

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

#200

Quando criei esse blog, ele era um projeto. Um projeto pra manter minha família informada. Um projeto pra me manter sã, acesa, lucida.

Não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias.

Enquanto preparo os pôsters pro Dia International da Língua Materna, me deparo com o pensamento de que o Português me mantêm sã. E, por consequência, esse blog, que por um tempo foi minha única forma de utilizar minha língua materna, me mantêm sã.

Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura - fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir.

Mais sã do que Moema de Nelson Rodrigues. Mais viva que Macabéa de Clarice Lispector. Mais racional e infantil que Dalinho de Ondjaki.

Para esquecer aquelas palavras, talvez fosse necessário esquecer a própria língua em que foram ditas, como nos mudamos da casa que nos lembra dum morto.

Porque sempre encontrei nas palavras uma forma de realização. Uma forma que não encontro nem mesmo no carinho dos que me cercam, nem na conquista de viver, nem na mobilidade inusitada dos meus anos.

A maior aventura de um ser humano é viajar,
E a maior viagem que alguém pode empreender
É para dentro de si mesmo.
E o modo mais emocionante de realizá-la é ler um livro,
Pois um livro revela que a vida é o maior de todos os livros.

Desato meus pés e mãos. Me ponho a escrever. A pensar. Organizar-me e acostumar-me com ideias que envolvo e desenvolvo em seres perdidos entre páginas de cadernos.


E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muito acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.

Escrever também não. É uma fotografia muda. Um silêncio; uma pergunta.
E deixo aqui, na postagem de número duzentos de um campo aberto, daquela camaleoa de anos atrás e anos futuros, numa escala remota, esse gosto pela literatura, pela minha língua materna, pelo simples ato de escrever. E, finalmente, (re)encontro em mim a criança apaixonada que fui. Encontro em mim o velho Bode Orellana de Henfil.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

o feno, a primavera e o rio

Naquela manhã quando eu acordei, não era só a indisposição óbvia do meu corpo, mas também era a falta da presença de um outro corpo ao meu lado. Vício. Pattern. Dependência? Como se eu tivesse mentido na redação... Mas o dia seguiu com o som do rio acariciando as lembranças da minha infância e toda aquela vitamina C sendo alimentada no meu corpo. Omelete. Primavera.

Nos alimentamos de cuscuz naquela madrugada com a luz singela do abajur, enquanto nos deliciávamos com o sabor tão conhecido de rum. Tão honestas que somos, acabamos naquelas quatro curtas horas de conversação. Foi como estar em Musala, mas em Susac.

Na manhã seguinte, meu corpo não estava mais tão indisposto e havia, sim, alguém ao meu lado. Um espaço pertencente a cinco indivíduos especiais. Prevalecente. Minha cama é feno, sou cavalo, corcel, égua, como bem entendestes. Basta tê-los comigo pelos poucos meses que nos restam. Persisto em ser racional. De nada vale ficar aguardando na caixa de entrada.

With you it's not the simple 'I miss you! We should go for a coffee!'; I actually really mean it. (...) Before that note you gave me in Winter Gala, I thought your love for me was just like the love that you give around to everyone. When it comes to you, it's hard to distinguish who you care for the most. You love too much

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

quaisquer que sejam nossos aforismos

Somos afim de nós mesmos. E nos inundamos nessa caminhada solitária na rua de ladrilhos brancos. Nos perdemos sem perceber, incapazes de fugir de nossos afins. Aforismos inalcançáveis. Mas já que eu nem entendo o significado dessa palavra, quem diria o da solidão... Bruta amiga.

Será que o meu hábito de me colocar na alma dos outros, me leva a ver-me como os outros me vêem, ou me veriam se em mim reparassem? Sim. E uma vez eu perceba como eles sentiriam o meu respeito se me conhecessem, é como se eles o sentissem na verdade, o estivessem sentindo, e sentindo-o, exprimindo-o naquele momento. Conviver com os outros é uma tortura para mim. E eu tenho os outros em mim. Mesmo longe deles sou forçado ao seu convívio. Sozinho, multidões me cercam. Não tenho para onde fugir a não ser que fuja de mim.
Bernardo Soares (heterônimo de Pessoa) - extraído de Diário ao Acaso

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

também não somos

Quando eu aprendi a escrever, me aventurava nas noites ao lado daqueles baús do meu quarto, enquanto a minha irmã dormia na bicama, a escrever. Escrevia poemas sobre pássaros. Eram vinte e quatro, eu lembro.

Me escondia debaixo da coberta, com uma pequena luz e com a porta fechada, esperando que meus pais não me pegassem às quatro da manhã lendo. Mas não era minha culpa! Eu não conseguia pregar os olhos sabendo que aquelas páginas me reservavam um mundo mais fascinante e que eu lembraria no dia seguinte - ao contrário de meus sonhos. Dormir sempre me pareceu uma grande perda de tempo. Eu me deliciava página pós página, até me dar conta de que as páginas tinham acabado e a noite também. Não me lembro de ter sido uma criança sonolenta. Minha depravação do sono só me tornava mais hiperativa e energética, num efeito contrário que minha família nunca pôde entender.

Quando eu aprendi a escrever, me falaram que eu ia ser escritora. Naquela época, eu dava risada.  Mas não foi só a minha professora da primeira série que me falou isso; foi a mãe do meu vizinho-melhor-amigo; foi minha professora de português da quarta, da quinta, da sexta, da sétima, da oitava série... e também no colegial. Me parecia loucura que todo mundo estivesse me falando aquilo, como se impusessem meu futuro.

Quando criança, eu queria era ser roqueira! Queria ser astronauta, que nem o Marco Pontes - que eu acreditava ser meu primo - pra poder pisar na lua! Eu acho que já quis tudo. Não sei como coube tanto desejo a um serzinho tão pequeno. Já quis exatas, já quis humanas, já quis artes. Já quis tudo junto. Foi por isso que eu sempre me meti a participar de tudo, desde esportes até grêmio; desde violão até tutora de matemática. Talvez nem tenha sido consciente de que eu não fechei o leque. Evitei fazê-lo até o momento em que fosse estritamente necessário.

Agora que me parecia tão certo que eu queria estudar e fazer cinema, aquelas pulgas - que eu crio - vem me incomodar. Vem me fazer questionar, duvidar. Duvidar da minha capacidade. Trazem meu ego de escritora, de artista, de pensadora, de questionadora pra baixo. As pulgas fazem eu me criticar repetidamente. E a questão não é falta de elogios, é a simples falta de confiança. E não é que eu tenha medo do futuro; às vezes, é um puro medo de mim mesma.

A arte não nos sacia como a matemática. Não é exata. Não é findável. Não é completa. E nós também não.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

coxinhas, fantasmas e suposições

Desde quinta-feira, quando se deu início aos protestos em Mostar, tive uma sensação estranha. Mas, sexta-feira, quando um email foi enviado entre os alunos que se mobilizavam para se juntar à manifestação, eu imediatamente torci o nariz. Só conseguia ouvir uma voz soando na minha cabeça e dizendo "coxinha!".

Aquela fumaça preta subindo ao céu por volta das cinco da tarde me parecia um monstro se formando, pronto para engolir Mostar em um cenário comunista de um banco de vidro. Me parecia um sugador de energias que me invadia como uma lembrança sendo recuperada. E foi como se eu estivesse esperando. Esperando o som de balas de borracha, o som do aterrorizador dos helicópteros, a correria desesperadora. Mas o mesmo tempo em que eu esperava, eu sabia que era uma espera inútil. Eu sabia o quão triste era o fato de que eu não dava nenhuma credibilidade àquela fumaça.

Eu não soube de onde veio essa falta de credibilidade. Mas eu caminhava ali, e me estendia no meio do cruzamento, observando com um peso dentro de mim. Am I sick if I find this whole scene beautiful?, ela perguntou. Eu hesitei. Era como se uma arrogância tivesse subido ao meio peito e ficado ali, não me permitindo sentir nada por aquilo tudo. Mas eu respondi que não, porque eu via o céu amarelo, como no filme da noite anterior, e ouvia cada som como se estivessem sendo amplificados.

Me senti um fantasma. Uma carga energética ao nosso redor absorvia a energia do lugar, mas nos apagava. Outsiders. E coxinhas. Sem cantoria, sem gritos, assistiam - e assistíamos - aos prédios serem quebrados. Quando chegamos mais perto, podia ouvir o barulho de destroços. Não havia black blocs. Eram cidadãos enfurecidos. Sem emprego, sem direitos. Por mais que eu entendesse aquilo, o peso não saia de mim, porque eu reconhecia não entender nada. O cheiro forte não era meramente cheiro de queimado. Havia algo mais suave misturado ao odor de fogo queimando; algo que eu não soube definir.

Enquanto na Áustria se protesta sobre a Palestina; no Brasil se protesta sobre o transporte público, sobre a Copa. Na Bósnia, surgia, então, uma luta generalizada, que, aos meus olhos, não tinha força nenhuma. Não havia nenhum MPL da vida para falar na televisão, dar entrevistas. Eram só cidadãos comuns com cartazes que estabeleciam as dez vagas - e estúpidas - reivindicações. Uma das exigências chamou minha atenção: que os membros do governo renunciassem até o final da semana seguinte. Queria ter achado engraçado, mas tudo que havia era uma sensação monótona e vazia; aquilo provava que tudo que estava acontecendo não daria em nada. Que em uma, duas semanas, só restariam as lembranças e os prédios queimados com as janelas estilhaças na calçada. E aquela esperança que vinha às ruas retornaria ao seu estado cotidiano de frustração e ódio.

Passei o final de semana refletindo. Tendo que respirar fundo ao ouvir opiniões variadas... hipóteses e suposições insistentes. E me doía perceber que aquela esperança que brotava no corpo e na face dos meus amigos me fosse tão insignificante. A parte vazia de mim queria rir da cara deles e falar para pararem de acreditar. Mas não conseguia entender porque me sentia assim. Vejo aquela mesma arrogância de antes destruir minha energia, minha paciência; me calo e peço silêncio.

E quando o protesto de segunda-feira foi anunciado e a escola nos proibiu de participar, eu sabia dos coxinhas. Sabia que muitos se meteriam a ir. Mas uma grande amiga minha que eu rotulei como coxinha, me encarou com aquela paz de sempre estampada em seu rosto e me falou que queria fazer parte daquilo. Que queria estar apoiando a comunidade em que vive nos seus momentos bons e ruins. E foi como um soco na minha arrogância; aquela inocência tamanha. Talvez eu também quisesse estar ali. E as suposições pela manhã eram variadas. Não se sabia se seria algo violento ou somente uma manifestação pacífica.

De forma alguma. Não era medo o que eu sentia. Por favor, por que teria medo da polícia da Bósnia?! São cidadãos comuns como todos os outros participantes daquela manifestação e por isso não agiram contra os manifestantes no protesto anterior. Já vivi na pele de estar cara a cara com a polícia fascista brasileira. Não era medo. Era uma aflição, uma vergonha, uma confusão que tomava aquela arrogância que havia me dominado pelos últimos dias. Não sabia o que pensar. Mas ri quando a polícia anunciou que "só avançaria sobre os manifestantes se houvesse violência". Quantas vezes já havia escutado esse mesmo discurso?

O que consigo enxergar agora, enquanto estou doente e descansando na minha cama, é que realmente, não é um movimento organizado. E eu não estava enganada sobre o fato de que a desorganização desse movimentos e dos protestos não trariam nenhum tipo de reforma. Talvez, se surgir uma organização, uma liderança em Mostar (como surgiu em Tuzla), as coisas mudem. Por ora, não acontecerá nada. Mas o que vai ficar desse começo de fevereiro de 2014 no povo bósnio é a esperança. Porque é a primeira vez desde a guerra que o povo se mobiliza. Um político esloveno declarou que com esses protestos, a Bósnia dá um passo mais próximo à UE. Porque finalmente a população parou de simplesmente reclamar sentada no sofá. A Bósnia "acordou" como no Brasil em Junho. Acordou temporariamente. O que significa que pelo menos essas faíscas de luta podem prevalecer e se instaurar na mentalidade das pessoas - que é tão cruelmente negativa. "Irmandade e união", como dizia Tito. As população bósnia-bosníaca, bósnia-croata e bósnia-sérvia se coloca no mesmo patamar de solidão, de terem sido esquecidas em meio a tanta corrupção e nacionalismo.

Espero, do fundo do meu coração, que as minhas suposições estejam erradas. Que as reformas venham e signifique um crescimento, o movimento de uma sociedade pós-conflito para sair do estado de pós-conflito.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

agora é cedo

Não sabia o que fazer. Se ia para o mar, mesmo que a chuva do lado de fora caísse, ou se admitia estar perdida. Perdida de fato e de direito. Porque ali estava, com uma barata, vagando pra baixo e pra cima, sem saber. Sem saber nada. E quando viu que não podia sair sem ser vista, esperou. Esperou pela deixa em que a porta do banheiro fecharia e ela poderia correr. Mas correr pra onde? Não sabia. Não fazia a menor ideia. Enfiou o livro e o caderno na pequena mochila como se estivesse fugindo por um longo tempo. E com medo de que a porta abrisse antes de que ela tivesse tempo de vestir o casaco e jogar a mochila nas costas, forjou em sua mente a conversa que aconteceria. Se apressou o máximo que pôde e deixou um bilhete mal escrito com um número de telefone que nunca usou. E partiu pela rua, como se estivesse com medo de ser perseguida pelos fantasmas de si mesma, sentindo a chuva cair e cobrir seu rosto de lágrimas que não saiam de seus olhos. Mas talvez ela quisesse que elas estivessem saindo de si, porque, pelo menos, poderia sentir.

"- Você tá bem?

- Não. Mas não tem problema.

O que aconteceu?

- Nada. Não se preocupe. Está tudo bem, - sorriu - agora posso criar."