quarta-feira, 6 de agosto de 2014

fragmentos finais - parte um

Segurava em mãos aquele livro de uma história de terror infantil e pensava sobre como minha mente sempre parece voltar para aquele livro. Não só porque foi um dos livros que eu li inteirinho só através da escuta naquelas noites em que minha mãe se sentava no pé da minha cama e lia em voz alta pra que eu e minha irmã caíssemos no sono - e ela era sempre a primeira a fazê-lo -; mas também porque eu sempre retomo a ideia de que aquele personagem escondido por trás daquelas palavras foi capaz de sair de seu próprio corpo. Corvos pretos; pretos como aqueles pássaros que eu observava pela janela da sala três. Krabat fugira do seu próprio corpo e sempre tive inveja disso. E, na minha concepção, a inveja é um sentimento tão cruel e desprezível quanto o arrependimento.

Coloquei o livro de lado.

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Enquanto escrevia a dedicatória, o metrô balançava. Minhas palavras saíam borradas no papel, embora tão claras em minha mente, e eu adicionava letras inexistentes que eram mero produto da minha confusão linguística. Ouvi a voz masculina em português anunciando a próxima estação e depois a voz feminina, em inglês.

Era a minha estação.

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Quando fechei a porta, lá estava. O desenho nunca me abandonou, embora eu tenha esquecido dele por um bom tempo. A Escala foi só um ponto de estadia. Foi só um ponto imaginário daquele sonho sobre o qual aquela holandesa me contava enquanto atravessávamos a rua. Eram só duas janelas e uma porta debaixo de um telhado; aquela casa que era vizinha de uma árvore e presenciava o sol com seus raios tortuosos. Havia uma placa desenhada a lápis ao lado. Mas aquela paisagem era coberta pela rosa de nanquim que me foi dada de presente em uma daquelas eternas tardes de quinta-feira nas quais nos largávamos sobre o chão gelado e nos deixávamos ir muito, muito longe.

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Ali no carro, ao lado da minha mãe, eu fechei os olhos e pude ver tudo perfeitamente. Foi em como muitas das minhas memórias, quando eu sou a espectadora da minha própria vivência, como se eu estivesse mesmo fora do meu corpo. Aqueles sons tão harmoniosos que ecoavam do rádio do carro eram os mesmos que inundavam aquele palco de chão de madeira preta em que nós duas mergulhávamos. Além de tudo, mergulhávamos no olhar um da outra, como se nos unissemos num só corpo artístico, como se nossos movimentos se encaixassem perfeitamente mesmo que não tívessemos ensaiado o tanto quanto gostariamos. Ali, de olhos fechados, eu podia ver tudo do palco superior, até que o carro estacionou e eu tive que correr pra fora, esperando voltar à tempo de ouvir o final da canção de Marcos Ariel.

O humor da nossa lua: pra nós, as fases.

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Eles ainda não tinham acordado. Eu lavei a louça pacientemente no silêncio daquela manhã. Já não era tão cedo quanto eu gostaria que fosse. Tomei uma caneca cheia de um café forte que tinha acabado de fazer, sentada naquele banco branco do qual eu tinha tirado a almofada. Eu tinha esperança de ouvir algum barulho vindo da escala a cima de mim, mas o cenário permanecia em silêncio.

Deitei-me na rede verde que se espreguiçava em frente à casa e que eu havia me esforçado pra colocar mais próxima ao chão. Continuei a ler sobre jardins e crianças magras ganhando energia. Mas não sentia nada. E parei, tentando sentir o calor do sol bater sobre minha pele. Mas nada. Era como se nada mais fosse físico.

Pensei no desenho atrás da porta.

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